Em Tuskegee, durante 40 anos, 400 homens negros com sífilis ficaram sem tratamento para permitir estudar a “história natural” da doença. Não foi acidente nem aberração. Foi uma história americana.
Tuskegee, no início do século XX, era uma pequena cidade do Alabama com uma população essencialmente rural, analfabeta e negra. Em 1932, sob os auspícios do US Public Health Service (PHS), começou em Tuskegee um estudo sobre Untreated Syphilis in the Negro Male. Durante 40 anos, até 1972, 400 homens negros com sífilis seriam mantidos sem tratamento. Pelo menos 100 morreriam comprovadamente por complicações da doença. Em julho de 1972 a história de Tuskegee apareceu no New York Times. O secretário da Saúde da Administração Nixon e um senador democrata da Comissão de Saúde confessaram-se “chocados”. Em novembro, o projecto foi declarado “não ético” e foi encerrado.
No sítio do Center for Disease Control (CDC) há agora uma página dedicada a Tuskegee. Aí de diz que o estudo foi feito para “justificar um programa de tratamento” da sífilis “para negros”. Admite-se que os homens não receberam o tratamento “adequado” e que foram “enganados”. Mas refere-se que só em 1934 teriam sido publicados os “primeiros artigos” sobre os “efeitos” da sífilis não tratada.
Nada disto é verdade.
Em 1900, Julius Rosenwald, um milionário filantropo do Illinois amigo de intelectuais negros do Sul, criou um Fundo para financiar fábricas e hospitais no Sul rural. Em 1929, o Fundo ainda pagou um estudo do PHS sobre a prevalência da sífilis entre a população negra. Tudo acabou com o crash da Bolsa. Em 1932, o PHS decidiu que Tuskegee, com uma elevada prevalência de sífilis, constituía uma oportunidade “única” para “observar” a história natural da sífilis não tratada. Foi com esse objectivo que começou o estudo de 1932, e não para “justificar” programas de “tratamento”.
Dizer que os tratamentos não foram “adequados” ou falar de “engano” é risível. Na verdade, os homens foram deliberada e sistematicamente prejudicados: tendo-lhes sido prometido tratamento, receitavam-lhes, para os manter “sossegados”, pomada de mercúrio (um tratamento introduzido por Paracelso no século dezoito, essencialmente ineficaz e frequentemente mortal) e aspirina. Mas desde 1910 que era corrente na Europa e nos Estados Unidos o uso do Salvarsan, o primeiro tratamento realmente eficaz contra a sífilis.
Além disso, houve um esforço repetido e deliberado ao longo dos anos para impedir que aqueles homens recebessem qualquer tipo de tratamento “adequado”, mesmo “acidentalmente”. A partir de 1934 houve reuniões regulares com os médicos da região, a quem foi fornecida uma lista com os nomes dos participantes no estudo e que não deviam ser tratados. E, quando o Exército instalou na cidade um aeródromo e quis promover o tratamento da sífilis entre os homens incorporados, a mesma lista foi enviada ao Alto Comando – que a aceitou.
Também não é verdade que os efeitos da sífilis não tratada não fossem conhecidos antes de 1934. O “estudo de Oslo”, realizado entre 1890 e 1910, já tinha mostrado que a ausência de tratamento conduzia num terço dos casos a doenças cardio-vasculares, insanidade e morte prematura. O estudo foi interrompido quando surgiu o Salvarsan. E, logo em 1936, o primeiro relatório do estudo de Tuskegee afirma claramente que a esperança de vida entre os homens não tratados é “20 por cento inferior à média”. E o relatório de 1955 assinala que lesões sifilíticas cardio-vasculares ou do sistema nervoso central foram a causa primária da morte num terço dos casos. Apesar disso, o programa manteve-se até ao escândalo de 1972.
A pergunta que se coloca é sempre a mesma: como é que foi possível?
Em 1997, Bill Clinton pediu formalmente desculpa aos sobreviventes de Tuskegee numa cerimónia na Casa Branca, onde, a propósito dos médicos e cientistas que conduziram a experiência, afirmou: “They forgot their pledge to heal and repair. They had the power to heal the survivors and all the others and they did not.” Uma evidência. Que não responde à questão. A verdade desagradável é que o fizeram simplesmente porque não consideravam aqueles homens de Tuskegee seus iguais. Porque eram negros.
O episódio de Tuskegee não pode ser dissociado das teorias correntes nos círculos médicos americanos do início do século XX. Autores respeitáveis pensavam e escreviam que o apetite sexual “excessivo”, a “imoralidade” e a “instabilidade familiar” dos negros explicavam uma prevalência “estimada” de sífilis “superior a 50 por cento”. (De facto, em Tuskegge a prevalência era 20 por cento. Entre as classes baixas de Londres, na mesma época, era 16 por cento.) E afirmava-se que os negros, “como as crianças”, não aceitavam tratar-se, “mesmo os educados”. Médicos que recomendavam “fortemente” o tratamento admitiam a seguir que a sífilis no negro era, “em muito aspectos”, uma “doença diferente”.
Em 1969, numa reunião em que o CDC, com o apoio de outras instituições médicas e científicas americanas perfeitamente respeitáveis, decidiu pela continuação do estudo, alguém terá dito: “You will never have another study like this; take advantage of it.”
Tuskegee não foi um acidente nem uma aberração. Foi uma história americana. Uma história de racismo.
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