Um estranho na hora do parto
Justiça determina coleta do cordão umbilical de bebê e momento do nascimento vira situação de humilhação para mãe de Curitiba
na Gazeta do Povo
“Mãe, ele está me vendo nua?” A pergunta foi feita por Fernanda* no momento em que, já devidamente
acomodada na sala de parto, preparava-se para o nascimento de Augusto*.
Ela estava acompanhada da mãe, Lúcia*, quando percebeu a presença de um
homem desconhecido ao lado da mesa de cirurgia, junto à equipe de
enfermeiros e do médico obstetra.
A pergunta foi feita por Fernanda* no momento em que, já devidamente
acomodada na sala de parto, preparava-se para o nascimento de Augusto*.
Ela estava acompanhada da mãe, Lúcia*, quando percebeu a presença de um
homem desconhecido ao lado da mesa de cirurgia, junto à equipe de
enfermeiros e do médico obstetra.
O estranho que assistiu ao parto de Fernanda estava lá a serviço de
um laboratório de Curitiba, para realizar a coleta do cordão umbilical
do recém-nascido para comprovação da paternidade por exame de DNA. Tão
logo o bebê nasceu, o homem se retirou da sala de posse de amostras de
sangue da mãe e do cordão umbilical.
Conflito
A situação vivida por Fernanda, que se considera vítima de violência
obstétrica, é resultado de um conflito com o pai da criança (cuja
paternidade foi comprovada posteriormente pelo exame), que culminou em
uma decisão judicial emitida às vésperas do parto. A liminar determinava
à gestante indicar alguém habilitado para realizar a coleta do material
biológico para fazer o DNA. No entanto, não há em nenhum documento
menção à necessidade de que essa pessoa assistisse ao parto, como de
fato ocorreu. Além disso, devido à iminência do nascimento do bebê,
Fernanda não indicou ninguém.
“Quando percebi um desconhecido de avental, touca, máscara e luvas,
parado, sem função nenhuma, meu coração ficou pequeno e fui invadida por
um sentimento de impotência absoluta, de solidão plena, sem ter ninguém
a quem pedir ajuda. Fernanda estava com as pernas abertas, já em
posição para dar à luz, amarrada por faixas de gaze, totalmente
imobilizada e absolutamente vulnerável”, relembra Lúcia.
Impotência
A sensação descrita por Lúcia, no entanto, não é exclusividade de
mãe. O obstetra de Fernanda compartilhou da mesma impotência. “Fiquei
traumatizado também. Nunca tinha visto nada igual. A decisão judicial
foi agressiva. A coleta não precisava ter sido feita naquele momento”,
desabafa o médico de 67 anos, 41 de profissão.
Segundo ele, o nervosismo provocado pela situação poderia ter
resultado em prejuízos à mãe e ao bebê. “O leite poderia não descer, a
mãe poderia ter desenvolvido depressão pós-parto, o vínculo entre mãe e
bebê poderia ter sido prejudicado”, completa.
O episódio ocorreu em 29 de setembro. Dois meses depois, o sentimento
de revolta de Fernanda permanece. Ela ainda busca respostas. “O que eu
quero é entender como isso foi acontecer. Como alguém que eu não sei
quem é assistiu ao meu parto? Como é que o hospital deixou que isso
acontecesse? Aquele era um momento meu e do meu filho. Na hora eu tentei
ignorar a presença daquele homem. Mas o clima na sala ficou pesado.
Dava para perceber que o médico e os enfermeiros também estavam
incomodados. A sensação de desamparo é muito grande. Precisava ter sido
desse jeito?”, questiona.
*Os nomes são fictícios para preservar a identidade das pessoas envolvidas na história.
Repercussão
Diante da colisão de direitos fundamentais, Justiça priorizou o direito à paternidade
A experiência vivida por Fernanda* foi resultado de uma decisão
judicial possivelmente inédita no Brasil. A Justiça determinou a
presença de alguém, a ser indicado pela gestante, no momento do
nascimento do bebê para a coleta de material biológico para comprovação
de paternidade. O episódio suscita alguns questionamentos: qual é o
limite da intervenção do judiciário?; no caso de colisão de direitos
fundamentais, como o direito à intimidade e à vida privada da gestante e
o direito à paternidade do recém-nato, qual deve se sobrepor?; havia
necessidade de o responsável pela coleta assistir ao parto?
Nesse caso há, ainda, o agravante de que Fernanda não indicou pessoa
de sua confiança, conforme oportunizava a liminar e, mesmo sem previsão
legal, alguém que ela ainda não sabe quem é presenciou o parto e coletou
o material biológico dela e do filho.
Segundo a advogada Ana Carla Matos, especialista em Direito de
Família e professora da UFPR, trata-se de uma decisão polêmica e
complexa. “Não há dúvida de que a oportunidade de reconhecimento de
paternidade é um direito do pai e do filho. Contudo, a condução desse
direito não pode representar violência obstétrica, nem uma intromissão
indevida no exercício da medicina, devendo se priorizar a segurança no
nascimento da criança.”
Por outro lado, pondera a advogada, que a Justiça concedeu à gestante
o direito de escolher quem seria a pessoa responsável pela coleta do
cordão umbilical, que poderia ser o próprio médico obstetra. Segundo
Fernanda, no entanto, o avançado da gestação não permitia que se
submetesse ao estresse que a contestação judicial provocaria – ela
recebeu a intimação no dia 24 de setembro, com 39 semanas e meia de
gestação e, cinco dias depois, entrou em trabalho de parto.
A decisão liminar não deixa claro onde, exatamente, a pessoa
designada para coletar o material biológico deveria estar – na sala de
parto ou na sala de espera? “A decisão é vaga. Mas acredito que
positivamente vaga, pois possibilitaria que a mãe indicasse essa pessoa
para realizar a coleta e de que maneira isso seria feito”, observa Ana
Carla. Entretanto, uma vez que a indicação não foi feita, ninguém
poderia ter entrado na sala de parto e coletado amostra de sangue e o
cordão umbilical sem determinação expressa da Justiça, como ocorreu.
“Nesse caso, o hospital falhou imensamente na fiscalização, foi
omisso. A liminar determinava que a mãe indicasse. Não havia abertura
para o suposto pai indicar. O hospital deveria ter consultado seu
assessor jurídico, porque o que se cumpriu não foi a ordem judicial. Em
última instância, o médico poderia ter impedido a entrada na sala de
parto, uma vez que ele é o responsável direto pelo bem-estar da
parturiente e do bebê.” Por meio de nota, a maternidade onde o parto foi
realizado alegou ter apenas atendido à ordem judicial para coleta de
material do cordão umbilical no momento do nascimento.
Confira o depoimento da avó da criança
Já passava das 13 horas quando entrei na sala de parto onde Fernanda*
daria a luz ao meu terceiro neto. A princípio, para leigos, o local é
meio confuso, claro demais, com fios, luzes e equipamentos piscando,
enfermeiros e médicos de máscaras, luvas e toucas. O primeiro cuidado é
obedecer com rigor à ordem de “não tocar em nada azul”, para não
contaminar a sala de cirurgia. Minha filha já estava deitada, com a
touca cobrindo os cabelos e recebendo a anestesia. Um pouco ansiosa, mas
rindo, brincou, perguntando se se eu, muito mais ansiosa do que ela,
estava pronta para fotografar tudo. Respondi que sim, me sentei numa
banqueta atrás dela, segurando-lhe os ombros descobertos. Alguns minutos
se passaram, e o que se ouvia eram apenas sons metálicos dos
equipamentos médicos. A equipe toda estava silenciosa, concentrada. Foi
quando Fernanda virou os olhos pra mim e, com a voz meio embargada, me
perguntou – “Mãe, ele está me vendo nua?”.
Só nesse momento percebi um homem alto, de avental, touca, máscara e
luvas, parado do lado da mesa de cirurgia, a meio metro de distância de
minha filha, sem função nenhuma. Percebi logo que o estranho estava lá a
serviço de um laboratório de Curitiba para garantir o exame de DNA do
recém nascido. Meu coração ficou pequeno e me invadiu um sentimento de
impotência absoluta, de solidão plena, sem ter ninguém a quem pedir
ajuda. Penso que deve ser esse o sentimento que invade as mães quando
são incapazes de proteger seus filhos. Fernanda* estava com as pernas
abertas, já em posição para dar à luz, amarrada por faixas de gaze,
totalmente imobilizada, absolutamente frágil, vulnerável. Procurei
tranquilizá-la: - “Não, filha, ele não está vendo nada. Você está toda
coberta”. Fiz carinho nos ombros dela e nós duas começamos a chorar,
tentando esconder uma da outra o sentimento mais doloroso das nossas
vidas.
O parto começou, o médico empurrou com força a barriga de nove meses
para baixo, Fernanda* reclamou de dor e eu me preparei para fotografar o
nascimento. Foi quando a enfermeira pegou o braço de minha filha, tirou
uma seringa de sangue e levou para o estranho, que o guardou. Os
trabalhos prosseguiam, e depois da pergunta de Fernanda* a tensão na
equipe aumentou. Era visível, mas ninguém disse uma palavra. Virei o
visor da máquina fotográfica para o estranho e acionei os botões. E até
hoje não tive coragem de ver as imagens.
Mais alguns minutos e o médico segurou o meu neto, ele chorou, minha
filha quis vê-lo e lá veio ele, vermelho, enrugado, ainda encolhido no
meio das toalhas azuis. “É ele mãe, é o meu filho”, saudou Fernanda*.
Naquela hora tão bonita, o bebê procurou-lhe o seio e, para ela, o
centro do mundo estava ali, absorvendo-a completamente.
Vi o estranho sair quase correndo, segurando os vidrinhos do
laboratório, com o sangue de Fernanda* e do cordão umbilical. Saí em
seguida, enquanto a equipe concluía a cirurgia. Não me lembro de ter
tirado as roupas hospitalares, nem se falei com alguém. Ficou apenas um
vazio na alma que hoje, 60 dias depois, ainda permanece, intacto. Como
minha filha sabia, o teste do DNA deu positivo. O que nem eu, nem ela
sabíamos, naquele momento, é que o nosso calvário estava apenas
começando. Mas essa é outra longa e triste história.
Falhas institucionais resultaram em violência obstétrica
Na avaliação da advogada Sabrina Ferraz, coordenadora da
Subcomissão de Violência Obstétrica da Comissão de Estudos sobre
Violência de Gênero (Cevige) da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção
Paraná (OAB-PR), a experiência vivida por Fernanda* ocorreu devido a um
conjunto de falhas . O resultado foi a submissão da gestante a uma
situação de violência obstétrica.
“Nesse caso, violência obstétrica foi submeter a intimidade da gestante a um estranho.”
Para Sabrina, a privacidade e a dignidade da mãe foram violadas.
“Acredito que o pai tenha agido de má-fé, fez valer uma ordem judicial
de forma equivocada. A liminar era para ela, e não para ele. Houve,
também, inabilidade do hospital em interpretar a decisão. Não há
autorização para que se assista ao parto. O hospital não analisou o
conteúdo da liminar com exatidão. Mas também houve negligência por parte
da gestante e familiares em não questionar a presença do estranho que
realizou a coleta dentro da sala de parto”, argumenta a especialista.
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