Páginas

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

A cracolândia muda, não deve acabar, afirma antropóloga

Adriano Vizoni/Folhapress
Antropóloga da Unicamp, Taniele Rui acaba de lançar o livro "Nas Tramas do Crack"
Antropóloga da Unicamp, Taniele Rui acaba de lançar o livro "Nas Tramas do Crack"

na FSP


A cracolândia diminuiu. É cerca de um terço do que era no início da década e está mais concentrada: resultados de políticas públicas. Mas dificilmente vai acabar. Afinal, ela é um ponto de convergência das pobrezas urbanas, evidência de falhas em políticas de emprego, saúde, moradia.

"A cracolândia anda, como mostram 20 anos de história. Quanto maior a repressão, maior a resistência. Não se tira à força ninguém do espaço urbano. A cidade vai ter que conviver com ela."

A avaliação é da antropóloga Taniele Rui, 32, que lança agora "Nas Tramas do Crack - Etnografia da Abjeção". O texto, vencedor do Prêmio Capes de Tese de 2013, é de sua pesquisa de doutorado pela Unicamp. Entre 2008 e 2011, ela percorreu cenários da droga em São Paulo e em Campinas, apurando dinâmicas de usuários e de ações governamentais.

Para ela, não há "solução mágica", mas as políticas públicas devem buscar um tratamento respeitoso, sem violação de direitos. "Não há solução mágica. A abstinência pode ser uma possibilidade para algumas pessoas, não para todas", diz.


Folha - O crack completa 25 anos no Brasil. A cracolândia em São Paulo tem 20 anos. O que explica esse quadro?
Taniele Rui - A primeira entrada da droga em São Paulo foi na zona leste, em São Miguel [Paulista]. Havia um grande crescimento da violência, muitas mortes, grupos de extermínio, disputas no tráfico. Houve uma migração dos usuários da periferia para o centro, que se tornou um espaço de refúgio para eles. Os primeiros registros da cracolândia são de 1995, quando era ainda um local de preparação da droga. Nos anos 2000, virou um espaço de consumo.

Por que a cracolândia é o ponto mais radical das pobrezas urbanas, conforme a sra. afirma no livro?
Uma série de pobrezas urbanas se deslocou para lá; é um ponto de convergência. Uns migraram para a cidade em busca de emprego, não conseguiram e acabaram na rua. Outros eram meninos e meninas de rua. As pessoas que estão na rua não são loucas. Estão lá como resultado de uma série de falhas: assistenciais, de políticas de emprego, habitacionais, de saúde. É comum se dizer que o uso do crack mostra uma falha moral.
Mas o crack expõe uma falha social de todas essas políticas e também da legislação sobre drogas. No livro, quis fugir do discurso estereotipado de que as pessoas que estão lá têm famílias desestruturadas. A questão das drogas não é só biológica, psicológica, é também social -uma trama de ideias, de pessoas, de objetos, de espaços.

Qual é a melhor política pública para enfrentar o crack?
As políticas de redução de danos: um tratamento respeitoso baseado no cuidado, com profissionais de assistência, de saúde, evitando a repressão e a criminalização e sem violar direitos. A abstinência pode ser uma possibilidade para algumas pessoas, não para todas. Há os que conseguem dar conta do uso, desenvolvem outras atividades e ficam bem.

Mas essas pessoas estão na cracolândia?
Depende. Há pessoas que estão no programa De Braços Abertos [da Prefeitura de SP] que estão muito bem. Acompanho uma usuária há um ano e ela está dando conta da sua própria vida, trabalha, tem um lugar para dormir, condições de higiene e não consome como consumia antes. Está sendo observada por uma rede de profissionais.

Qual é a população da cracolândia?
A população é flutuante. Hoje estimo que sejam umas 300 pessoas que ficam por lá. Diminuiu bastante desde a época que fiz a pesquisa para o livro [junho de 2010 a junho 2011]. Como continuo indo lá, noto que os usuários estão mais concentrados. Agora ficam confinados na esquina da [rua] Helvetia com a Júlio Prestes. Antes, estavam em todos os quarteirões da região, ruas inteiras. A cracolândia diminuiu. Foi se reconfigurando.
Se, naquela época, a estratégia da repressão era de gato-e-rato, hoje é de contenção.

A redução da cracolândia é fruto das políticas públicas?
Sim. Por um lado por causa das ações sociais que se ampliaram, especialmente com a criação do De Braços Abertos, que atinge em torno de 450 pessoas. Há também o Recomeço, do governo estadual; tem ônibus do governo federal, do programa Crack é Possível Vencer. Por outro lado, [a redução ocorreu] porque a repressão ficou mais forte. Não uma repressão direta, mas a presença de mais carros da Guarda Civil Metropolitana e da PM.
Hoje a cracolândia deve ser um terço do que antes, entre 2010 e 2011. A repercussão negativa da intervenção violenta do governo do Estado em janeiro de 2012 mudou radicalmente o quadro. Virou um campo de intervenção de uma série de políticas, ações de defensores públicos, ativistas por direitos. Aquela tentativa de acabar com a cracolândia saiu pela culatra e a resistência ganhou força.
[Dados oficiais afirmam que houve redução de 80% no fluxo de usuários para a região nos últimos 12 meses. Os furtos de carros caíram 50% e o de pessoas em 33%. O número de prisões por tráfico cresceu 83% na região no mesmo período.]

A cracolândia vai acabar?
A cracolândia anda. Talvez não fique sempre ali; pode se deslocar para outros espaços, como ela vem fazendo ao longo desses 20 anos: foi mudando de rua por ali. É um absurdo falar em eliminar a cracolândia. Ela resiste. É o que mostram esses 20 anos de história. Quanto maior a repressão, maior a resistência. Não se tira à força ninguém do espaço urbano. A cidade vai ter que conviver com ela, com seus usuários. Vai ter que entender que eles fazem parte da cidade e estão no único lugar que pode acolhê-los. É uma questão da metrópole, fruto de seus fluxos. Não acredito em algum tipo de solução mágica que vai resolver o que está acontecendo. São passos. O De Braços Abertos é um passo importante.

Qual experiência no mundo o Brasil pode usar?
O De Braços Abertos é um modelo. É inédito, corajoso, uma referência mundial. Está em andamento e há ainda muito a fazer e testar, além de expandir para mais pessoas. A Prefeitura de SP fez convênios com hotéis da região. Não está baseado na abstinência total, no afastamento para uma clínica longe de tudo. Surgiu como um acordo, quando os consumidores armaram barracas após uma ação repressiva. A cena de uso de crack em SP é muito específica do Brasil. Nos EUA, as pessoas ficam dentro de prédios abandonados, não na rua.

A sra. está pesquisando o uso do crack no Rio. Quais são as diferenças em relação a São Paulo?
No Rio, estou estudando o consumo de crack no complexo da Maré. Lá, as cracolânidas estão dentro das favelas e são mais itinerantes, não há cenas consolidadas como em São Paulo. O consumo do crack é mais recente no Rio e não há tantos profissionais de saúde trabalhando com os usuários como aqui.

Por que a sra. diz que a cracolândia não é um gueto?
Porque gueto é recluso, fechado. E a cracolândia tem completa relação com a cidade de São Paulo. São relações nem sempre amistosas. Mas não é uma ilha cercada de centro por todos os lados. Ela faz parte da dinâmica, movimenta a economia, é mais como um bazar. Não gosto da ideia de que eles têm uma moral a parte, que são totalmente diferentes de nós. Tem muita gente que vai lá para comprar e volta para os seus afazeres. Não é todo mundo que só está lá. Às vezes chega a família, eles voltam para a casa. Há idas e vindas.
Também não gosto do termo zumbi para os consumidores. É um recurso retórico que tira humanidade. Eles não estão assistindo passivamente ao definhamento de seus corpos. Lutam com eles mesmos para se refazerem. Nem sempre conseguem. É trágico. A maioria quer conseguir ficar bem.

Seu livro pode ser visto como condescendente em relação às drogas?
Não tenho como saber como as pessoas vão interpretar. Não estou interessada em enaltecer nem o consumo de drogas, nem a cracolândia, nem os traficantes. Quero entendê-los com mais rigor e, em alguma medida, com mais compaixão. Para a gente entender o mundo e não só dizer como ele deveria ser. De perto a coisa é mais difícil.

Qual sua visão do projeto Nova luz?
Ele está adormecido, mas não foi anulado. É importante que ele seja anulado porque é uma aberração. É um projeto de concessão urbana para iniciativa privada, solo fértil para a especulação imobiliária e para violações de direitos. Aquele espaço é uma zona de interesse social.

Nenhum comentário:

Postar um comentário