Helia Molina começou a última semana de 2014 como uma das ministras menos conhecidas do Chile. Responsável pela pasta da Saúde, ela mudaria sua sorte em cinco dias, terminando a semana, já em 2015, como ex-ministra e tornando-se celebridade das redes sociais, onde milhões de chilenos falavam sobre ela, a maioria em apoio, mas também com algumas críticas enraivecidas.
Tudo aconteceu com uma mera declaração. Na segunda-feira (29/12), foi publicada no diário vespertino La Segunda uma entrevista onde ela falou do projeto de despenalização do aborto, que se discute no país desde maio. A proposta da presidenta Michelle Bachelet é permitir o aborto somente em casos de risco de vida para a vida da mãe ou de gravidez como resultado de violência sexual.
A elite chilena é daquelas que ainda se permite escandalizar, e a ministra escandalizou a elite quando disse, quando perguntada sobre as reações dos grupos conservadores ao projeto, que “a política precisa ser feita com um pé na realidade, e ninguém pode ser sério achando que no Chile não se faz aborto porque é proibido pela lei, muitas famílias ricas e conservadoras já levaram suas filhas a clínicas sofisticadas para abortar, enquanto as pobres abortam em locais clandestinos, ou com medicamentos, colocando sua vida em grave risco”.
O que Helia Molina disse é uma verdade no Chile, no Brasil e em quase todos os países da América Latina, onde o aborto é uma polêmica para aqueles que querem mantê-lo proibido – e um castigo para as mulheres que não têm essa opção se não provêm das camadas sociais para as quais ele está disponível, em troca de muito dinheiro.
Mas a política também é a arte das relações, e para o governo chileno não era conveniente levar adiante uma batalha dessas, e outras na área da saúde, brigado com as clínicas privadas e as associações médias. Ademais, o que foi dito pela ministra é uma dessas verdades que todo mundo sabe mas que não são fáceis de provar – tampouco é difícil, uma boa investigação encontrará facilmente as evidências, mas isso leva tempo, e a ministra, diante da reação às suas declarações, precisava responder imediatamente. A oposição já tinha iniciado uma campanha contra ela, dizendo que precisava provar o que dizia. O dia seguinte começou com Helia apresentando sua renúncia, para não macular o governo de Bachelet e o projeto. O pedido foi aceito.
Foi a primeira ministra derrubada neste segundo mandato da presidenta chilena, e por um lapso, por dizer uma verdade incômoda. E a verdade começou a vir a tona de uma forma que provavelmente ela mesma não esperava. Primeiro, uma fortíssima campanha de apoio às suas palavras. Entidades, personalidades e milhares de pessoas através das redes sociais defenderam Helia Molina e atacaram o governo por não tê-la defendido, aceitando sua renúncia rapidamente.
Mais rápida ainda foi a propagação da campanha nas redes sociais. Ainda na manhã de terça (30/12) o nome de Helia Molina estava entre os cinco primeiros no trending topics mundial do twitter.
A atriz e bailarina Javiera Parada fez uma confissão dizendo “levantemos a mão todas as que já abortamos (ícone de mão levantada), estamos falando de direitos humanos”, e centenas de mulheres a seguiram. Outras publicaram listas com nomes e telefones de médicos que realizam abortos em clínicas conceituadas do Chile, explicando como se fez o procedimento para se pedir um aborto, burlando a lei sem maiores problemas. Uma reportagem de um site chileno mostrou como funciona um serviço telefônico que é praticamente um “disque-aborto”, onde quem liga receberá todas as informações de como utilizar um medicamento chamado misoprostol, conhecido no país pelas mulheres que realizam abortos, e que estaria disponível em algumas clínicas privadas – o serviço telefônico teria sido introduzido no Chile por uma ONG holandesa, e faz parte de uma rede que disponibiliza o mesmo serviço em vários países.
A política tem dessas ironias marcantes. O governo de Bachelet patrocina um projeto que é um grande avanço num país onde o aborto é proibido em qualquer caso, mas perde popularidade principalmente entre as pessoas que apoiam a ideia, por não defender uma ministra que disse uma verdade que o governo não está disposto a confrontar. A oposição ganhou força entre seus aderentes, pois conseguiu derrubar uma ministra sem muito esforço, e ninguém sabe agora pra que lado o debate pode ir. Bachelet prometeu, em junho, que o projeto teria urgência, para que pudesse ser aprovado em 2014. Agora está buscando um novo nome para o Ministério da Saúde, e precisa agir rápido, porque o subsecretário que assumiu interinamente é um democrata cristão anti-aborto.
Quem é contra o aborto também reagiu, principalmente a organização Vozes Católicas, que organizou uma marcha com dezenas de mulheres católicas grávidas ou acompanhadas de filhos pequenos, no centro de Santiago. A direita tentou chantagear a legenda mais de centro da coligação Nova Maioria, que sustenta a socialista Bachelet no Congresso, e que conta com o Partido Democrata Cristão, mas este reagiu em silêncio – sua tradicional postura conservadora em temas valóricos, ao parecer, foi inibida pelo apoio popular à minista Molina.
Na mesma entrevista polêmica que lhe custou o cargo, a agora ex-ministra Molina tentou tranquilizar as organizações conservadoras classificando o projeto chileno como “suave”, já que não é como a lei aprovada há dois anos no Uruguai, que permite a qualquer mulher o direito de fazer um aborto no sistema público de forma segura, independente das suas razões.
Cabe ao governo, agora, saber como pretender retomar o debate sobre o tema. Isso significa decidir se o Chile prefere se manter, como o resto do continente, preso na controvérsia sobre o caráter filosófico do aborto, que está recheado de opiniões muito legítimas, mas que ignoram um problema de saúde pública.
Significa também se omitir ou não diante de uma realidade que torna a mulher refém de sua própria circunstância, e aproxima de forma imediata a diferença entre a riqueza e a pobreza da diferença entre a vida e a morte.
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