Branco,
preto, pardo, amarelo e indígena. Essas são as cinco categorias de
pertencimento racial com a qual estamos acostumados a nos identificar em
censos, questionários e formulários pelo Brasil afora. Se essas cinco
palavras são capazes de resumir as identidades étnico-raciais de cerca
de 200 milhões de brasileiros/as, é outra questão. Fato é que
convivemos com a necessidade de pensar nossa sociedade em termos de
relações raciais e, para tanto, certas categorias mostram-se
indispensáveis. Pensando nisso, neste texto discuto alguns
aspectos históricos e culturais relativos à classificação racial nos
censos demográficos brasileiros.
Longe
de ser um procedimento meramente técnico, a realização dos censos
demográficos refletem projetos políticos que se transparecem nas
questões elaboradas, na metodologia empregada e, evidentemente, nas
opções de respostas que são fornecidas. Assim, para se
aproximar de alguma classificação racial da população brasileira, é
necessário fazer escolhas de quais categorias sociais se pretende
visibilizar em detrimento de outras e, em decorrência disso, forjar as
lentes que poderão ser adotadas pela própria população para se enxergar
como tal. É por isso que aquelas cinco palavrinhas não são fruto de uma
percepção objetiva da demografia brasileira, senão reflexo de uma
determinada ideologia racial que, em dadas circunstâncias, foi
legitimada como um bom indicador da realidade social.
Na América Latina como um todo, pontuam Luis Angosto Ferrández e Sabine Kradolfer
(2012), os censos demográficos nacionais passaram a ser criados a
partir ou em torno da década de 1870, como uma decorrência de projetos
de modernização das nações cujo mote era a ordeme o desenvolvimento.
Dessa forma, os levantamentos de dados em caráter censitário se
mostraram essenciais para a consolidação institucional do Estado, assim
como para permitir uma governabilidade maior sobre a população. Nesse
contexto, países como Argentina, Guatemala e Venezuela inauguraram seus
censos, respectivamente, em 1869, 1870 e 1873.O Brasil seguiu na mesma linha e teve seu primeiro levantamento demográfico no ano de 1872.
Em tal recenseamento, o Estado dispôs de quatro categorias para a classificação racial: branco,preto, pardo e caboclo, entendendo pardos como a união de brancos e pretos, e caboclos como os indígenas e seus descendentes. Edith Piza eFúlvia Rosemberg
(2012) ressaltam que o Censo de 1872 já utilizava um critério misto de
fenótipo e descendência para a classificação racial, uma vez que as três
primeiras categorias correspondem à cor, ao passo que a última tem uma
origem racial. Esse nó, que vemos até hoje nos levantamentos atuais, acompanha nossa história desde os primeiros recenseamentos, tendo sido adotado também no segundo censo demográfico, de 1890, com a diferença de que este substituiu o termo pardo por mestiço.
Infelizmente, a cor/raça não foi apreendida nos dois recenseamentos subsequentes, quais sejam, em 1900 e 1920. José Luis Petruccelli
(2012) nos recorda que imperavam, nessa época, correntes de racismo
científico que associavam à negritude da população a traços de
inferioridade sociocultural. Talvez por isso tenha parecido
melhor, à elite vigente, evitar o levantamento de dados raciais enquanto
operava, noutro plano, um projeto de embranquecimento da população
brasileira. Foi nesse meio-termo – na passagem do século XIX
para o XX – que se intensificou um processo de imigração europeia e,
pouco depois, da chegada de asiáticos às terras tupiniquins.
A
classificação racial retornou apenas em 1940, quando o Brasil entrou
para o rol das nações que passaram a realizar censos modernos decenais,
sob a responsabilidade de um órgão competente – o Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE). Na ocasião, o termocaboclo foi abolido e a cor parda foi retirada dos questionários (mas retornou nas análises posteriores). Ademais, surgiu o conceito de amarelo
para contemplar os imigrantes de origem asiática e seus descendentes.
Sem menção à categoria indígena, no Censo de 1950 justificou-se que
esses poderiam se declarar pardos, uma categoria guarda-chuva que incluiria mulatos,caboclos, cafuzos
etc. E assim permaneceu pelas décadas seguintes até a redemocratização,
com exceção do ano de 1970, em plena ditadura militar, que,
curiosamente, retirou dos questionários a classificação racial.
Em resumo, o Censo de 1940 iluminou um Brasil um tanto quanto diferente do que se via anteriormente.
Em primeiro lugar, demonstrou que o projeto de embranquecimento foi bem
sucedido, visto que os/as brancos/as passaram de 44% da população em
1890 para mais de 63% em 1940. Ao mesmo tempo, esboçava um “novo”
segmento populacional – os amarelos. Já os indígenas ficaram invisíveis
dentro da categoria pardos. E, para piorar, demorou meio século para eles retornaram aos nossos censos.
Em 1991, enfim, o censo demográfico consolidou-se no modelo que adotamos até hoje: branco, preto, pardo, amarelo e indígena.
Finalmente houve menção aos indígenas enquanto tais. Esse sistema de
classificação foi reproduzido para as edições de 2000 e de 2010 dos
censos demográficos. No último, aliás, vemos que, pela primeira
vez desde o século XX, a população branca deixou de compor a maioria do
povo brasileiro. Hoje, conforme o gráfico abaixo, temos 47,7%
que se autodeclaram da cor branca, 43,1% parda e 7,6% preta, além de
1,1% amarela e 0,4% indígena. Com as técnicas de pesquisa atuais,
reduziu-se o percentual de “não declarados” a praticamente zero.
Desse histórico, importantes questões devem ser observadas. Nota-se que, desde sempre, a corparda
foi a mais permeável das classificações raciais (PIZA & ROSEMBERG,
2012): ora por agrupar um amplo e complexo gradiente que vai do branco ao preto, ora por supostamente incluir também os grupos indígenas e todas as misturas possíveis no caldo das “três raças”, os
pardos atuaram como um coringa em uma nação multicolor cujo
pertencimento racial, tão atravessado de outras variáveis imbrincadas a
relações de poder, é inevitavelmente um desafio.
Outro
importante movimento são algumas tendências na composição étnico-racial
da população que apontam para o caráter fluído e ambíguo da
classificação racial. A título de ilustração, o salto de menos
de 300 mil indígenas em 1991 para pouco mais de 700 mil em 2000 não
indica meramente um crescimento populacional, e sim uma revalorização de
identidades, processo esse que encontra eco na história
recente do Brasil, quando as mobilizações indígenas passaram a retomar
fôlego após sucessivas ameaças e violências perpetradas pelo regime
militar.
O mesmo pode estar acontecendo com as categoriaspreta e pardo,
para as quais o fortalecimento do movimento negro tende a tornar mais
recorrente, aceitável ou até mesmo desejável a autodeclaração em uma
dessas duas opções, como uma maneira de reafirmar identidades coletivas
em contexto de lutas e reivindicações. Não à toa, setores do
movimento negro lançaram a campanha, durante o recenseamento de 1991,
cujo slogan era: “Não deixe sua cor passar em branco”, fazendo uma
alusão crítica à tendência de branquear-se como tática de reconhecimento
ou ascensão social.
Agora, não se pode ignorar que as
categorias de pertencimento racial no Brasil continuam tendo imprecisões
que não resumem, com fidelidade, a ampla gama de cores, raças e etnias
que caracterizam a sociedade brasileira. Afinal de contas, Petruccelli (2012) pontua que o nosso país privilegia a manutenção da série histórica em detrimento de um esforço concentrado sobre a produção de estatísticas mais fiéis e condizentes à nossa realidade.
Em outras palavras, é preferível manter uma classificação racial
imperfeita, mas que foi bastante assimilada, a ousar a reformulação
desta, muito embora haja esforços por parte das autoridades competentes
para se aprimorar esse levantamento de dados num futuro próximo.
De
toda forma, temos em mãos um sistema de classificação racial com
informações suficientes para se descrever registros históricos, apontar
tendências futuras e refletir sobre a diversidade, as diferenças e as
desigualdades sobre as quais se edificou a sociedade brasileira. Ainda
que imperfeita, as categorias branca, preta, parda, amarela e indígena
devem fornecer subsídios para a reflexão, a crítica e principalmente a
superação das hierarquias que se reproduzem em sociedades racializadas
e, pior que isso, racistas.
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