no Blog Medicina Baseada em Evidências
(dica do César Titton)
Existem evidências científicas que servem mais para provocar reflexão do que para provar um conceito. Esse é o caso do intrigante artigo “Mortality and Treatment Patterns Among Patients Hospitalized With Acute Cardiovascular Conditions During Dates of National Cardiology Meetings”, recentemente publicado no JAMA Internal Medicine. Esta me soa como uma reflexão pertinente, que vai ao encontro do paradigma científico less is more.
Sabe-se que em dias de congresso de especialidade, os hospitais se esvaziam de tais especialistas. Isso é normalmente visto como um problema. Mas será que pode ser uma solução?
Que pergunta maluca, não? Foi esta questão que este provocativo trabalho procurou explorar. O modelo de estudo são os dois grandes congressos americanos de cardiologia, os famosos eventos do American College of Cardiology (ACC) e American Heart Association (AHA). Os autores compararam a mortalidade de 30 dias em pacientes do Medicare, internados por três diferentes condições: insuficiência cardíaca (N = 19.282), parada cardíaca (N = 1.564) e infarto do miocárdio (N = 8.570) durante várias versões dos congressos americanos (2002 a 2011), tendo como controle a mortalidade destas condições fora do período dos congressos.
O resultado deste estudo observacional apontou para menor mortalidade durante o período dos congressos, nos casos de insuficiência cardíaca (18% vs. 25%; P < 0.001) e morte súbita ressuscitada (59% vs. 69%; P < 0.001), comparado aos períodos sem congresso. Vejam a relevância, se isso fosse um tratamento, diminuir o número de cardiologistas pela realização de congressos reduziria a mortalidade com NNT = 17 para ICC, NNT = 10 para morte súbita.
Menos intrigante, mas também provocativo, a mortalidade por infarto foi semelhante quando comparado períodos de congresso (menos cardiologistas) versus períodos fora de congresso (ambos 39%; P < 0.86); ou seja, pouco importou o reduzido número de cardiologistas no caso de infarto.
Mas qual a implicação destes achados?
Primeiro, o mais óbvio: podemos continuar indo aos congressos (uma conclusão confortável em se considerando a proximidade do ACC, em março).
Segundo, o mais inconveniente: será que é bom os hospitais se verem livres de cardiologistas de tempos em tempos?
Mas antes de discutir as implicações, precisamos avaliar o quanto podemos acreditar na veracidade deste estudo. A pergunta científica é reduzir o número de cardiologistas é uma conduta eficaz na prevenção de morte em pacientes com ICC, PCR ou IAM? E os congressos foram utilizados como modelo experimental para explorar esta questão. Engenhoso.
Como sabemos, a evidência definitiva para eficácia de uma intervenção reside no modelo de ensaio clínico randomizado. Então, o modelo ideal para testar a hipótese de que menos cardiologistas reduziria mortalidade seria randomizar pacientes para receber atenção de um ambiente farto de cardiologistas versus ambiente carente de cardiologistas. Isto permitiria que pacientes desses dois grupos fossem semelhantes, não havendo risco de efeito de confusão.
Portanto, não estamos com o modelo ideal de estudo. Porém há uma novidade na análise do caráter observacional deste estudo: ele é quase um estudo randomizado. Por quê? Exatamente porque a escolha do paciente “alocado” no grupo carente de cardiologistas ou no grupo de muitos cardiologistas é aleatória! Sim, pois o paciente na verdade deu azar (ou sorte) de adoecer no momento do congresso. Sorte ou azar = acaso = aleatório = randomizado. Por esse motivo, como observado na tabela de características clínicas do artigo, os pacientes dos dois grupos têm características muito semelhantes. Isso indica que este é um estudo funcionalmente randomizado.
Isso é muito diferente de outros estudos observacionais, no qual o uso da intervenção (usar vitamina, tomar vinho, fazer exercício, fazer cirurgia) é uma escolha do indivíduo ou de seu médico. Escolha esta que acaba por diferenciar os indivíduos (quem escolhe fazer exercício é diferente de quem escolhe ficar na preguiça), gerando efeito de confusão. Porém aqui não, pois ninguém escolhe ficar doente de acordo com o dia de congresso cardiológico.
Ou escolhe? Será que em dias de congresso se internam pacientes menos graves, por dificuldade de contato com seu médico, que está fora da cidade? Bem, a semelhança dos pacientes nos dois grupos não sugere isso. Mesmo assim, autores fizeram uma análise para responder a nossa preocupação e demonstraram que não há variação na frequência de internamento a depender da época de congresso.
Aumentado ainda mais a confiabilidade dos resultados, os autores fizeram o que se chama de análise de sensibilidade,onde se testa a sensibilidade (pleonasmo proposital) do resultado a mudanças do preditor ou da população-alvo. Esta é mais uma forma de verificar se há fatores de confusão escondidos (unmeasured). Vejam que engenhoso: os autores avaliaram se o resultado se repetia quando o congresso era de gastroenterologia, oncologia ou ortopedia. Em nenhum dos casos foi vista a diferença de mortalidade por ICC ou PCR. Em outra análise de sensibilidade, os autores trocaram o desfecho. Compararam durante e fora dos congressos de cardiologia a mortalidade de pacientes que se internaram por fratura de fêmur ou hemorragia gastro-intestinal e não houve diferença de mortalidade desses doenças.
Nesta análise de veracidade, devemos nos preocupar também com a possibilidade de viés de aferição, pois este é um estudo retrospectivo, de revisão de prontuário. Mas será que uma revisão de prontuário erra se o paciente morreu? Na verdade, esse é um desfecho duro, robusto em relação a sua aferição, sendo pouco provável este viés. Além disso, o preditor também não tem erro, pois é basicamente o dia de admissão.
Considerando a “randomização funcional”, a objetividade das variáveis preditoras e de desfecho, as análises de sensibilidade, ficamos mais confiantes de que a mortalidade é maior em ICC e PCR durante os congresso. Porém há uma limitação. Estamos usando um modelo de congresso para testar a oferta de cardiologistas, mas falta no estudo a informação de que de fato o número de cardiologistas nos hospitais foi menor em época de congresso. Esse número reduzido é apenas uma premissa lógica. Por este motivo não podemos considerar que o estudo provou definitivamente o conceito.
Ainda bem, nos salvamos como especialidade ...
Por outro lado, fico a pensar, qual seria uma outra diferença hospitalar que pudesse ocorrer entre períodos de congressoversus períodos sem congresso? Eu não encontro, alguém encontra? (por favor, comentem). Mas mesmo que encontrem, os autores fizeram outra análise engenhosa. Em época de congresso, dados de estudos prévios mostram que a evasão de médicos é maior nos hospitais universitários do que nos hospitais não universitários, pois os médicos professores vão mais a congressos do que os não professores. Daí os autores fizeram a análise separada de hospitais universitários ou não universitários. Bingo!! O efeito protetor da época de congresso quanto a mortalidade de ICC e PCR só ocorre nos hospitais universitários!! Nos demais (em que a evasão de cardiologistas é menor) não houve diferença de mortalidade.
De fato, é um estudo provocativo, com análises engenhosas, que aos poucos vão nos convencendo que pode haver alguma verdade nisso. E já que o propósito maior deste tipo de evidência é provocar reflexão, vamos agora às reflexões.
O Paradigma da Agressividade
O paradigma da agressividade representa uma das heurísticas do pensamento médicos, podendo ser definido da seguinte forma: quanto mais grave o paciente, mais intensa (agressiva) deve ser a conduta. Este tipo de pensamento é considerado racional, pois indica condutas complexas para quem realmente precisa.
Como já comentamos neste Blog, heurística é uma atalho de pensamento, baseado em nossa intuição, o que nos leva a vieses cognitivos, pois nos distancia do pensamento baseado em probabilidades. A heurística da agressividade pode estar correta em algumas situações, porém pode agravar o paciente em outras situações. Desta forma, precisamos procurar evidências para cada situação, evitando utilizar este atalho mental como um mantra.
Observem o caso de David e Golias. Golias é um gigante, David um homem pequeno. Cada um representava seu exército em uma batalha em Israel e quem ganhasse a luta conquistaria o território. Como se sabe, David ganhou de Golias, mas não foi pela força. Pela força, ele perderia. Encontrou uma solução inteligente, menos agressiva, porém suficiente para matar Golias.
Nesta metáfora, Golias representaria um paciente crítico e David, o médico. Seria pela agressividade do tratamento que o problema se resolveria?
O paciente muito grave funciona como um sistema altamente vulnerável, onde a consequência de nossas condutas é mais imprevisível do que o normal. O sistema do paciente grave é dos mais complexos dentre os sistemas biológicos. Em sistemas complexos e vulneráveis pode ocorrer o efeito borboleta. Como já comentei neste Blog, o termo "efeito borboleta" decorre da metáfora de que o deslocamento de ar decorrente do simples bater das asas de uma borboleta pode provocar grandes fenômenos meteorológicos, se o ambiente estiver muito vulnerável. O pacientes crítico é muito vulnerável, não podemos perder isso de vista.
Vejam o exemplo da morte súbita ressuscitada em um jovem de 59 anos, sem doença cardíaca prévia. Chega rapidamente no Hospital e é reanimado em 20 minutos. Nesta circunstância, mesmo com eletrocardiograma normal (não há infarto em curso) é muito comum que nós cardiologistas indiquemos a coronariografia imediata, visto que a maior causa de morte súbita nesta idade é doença coronariana. Acionamos o cardiologista intervencionista para fazer o cateterismo de emergência, motivados pelo mais alto grau de gravidade (morreu e foi ressuscitado). Porém não percebemos que após uma morta súbita ressuscitada, o paciente usualmente não morre de outra parada, mas sim das consequências de ter ficado parado por muitos minutos. Injetar contraste na circulação de um paciente que ficou 20 minutos com rim isquêmico devido à parada pode ser desastroso. Ou o anticoagulante usado durante o procedimento tem mais potencial de causar sangramento. E assim por diante. Imprevisível.
Percebo uma frequente confusão entre dois conceitos: plausibilidade extrema e gravidade extrema. O primeiro justifica uma conduta mesmo na ausência de evidências (usar para-quedas ao pular de um avião), mas o segundo não. Na gravidade extrema, o sistema está mais vulnerável às complicações de nossos atos e a conduta agressiva pode ou não gerar um benefício. Na gravidade extrema, o princípio da hipótese nula deve prevalecer (exceto no curso inexorável, quando às vezes condutas podem ser aplicadas, por não se ter nada a perder).
Mas o que isso tem relação com o artigo que estamos discutindo? Exatamente por um achado muito interessante deste trabalho. Os autores analisaram em separado pacientes de alto risco e pacientes de baixo risco, de acordo com o escore de internamento AHRQ e surge outro dado muito interessante: a maior mortalidade em períodos fora de congresso foi observada apenas em pacientes de alto risco. Nos de baixo risco, a mortalidade era igual com ou sem congresso. Isso vai ao encontro da vulnerabilidade do paciente grave, que pode responder mal às nossas condutas heróicas e intempestivas.
Às vezes a melhor atitude é esperar, dar uma chance para que o paciente se equilibre sem que a gente atrapalhe e depois atuar em um sistema mais equilibrado. É ilusório achar que sempre haverá benefício de uma conduta agressiva em um sistema vulnerável. Isso varia.
No infarto grave (Killip III ou IV), acredito que a intervenção coronária percutânea imediata seja benéfica. Porém muitas vezes o CAT é realizado, mostrando um paciente triarterial ou com lesão de tronco, mudando o pensamento para indicação cirúrgica de urgência, como se esta fosse uma ótima saída para o paciente, pois ele é muito grave e precisa de uma revascularização completa. E quanto mais grave, mais urgente indicamos a cirurgia. Isto a despeito de não haver ensaio clínico para esta situação, que compare o tratamento cirúrgico (muito agressivo) com o tratamento conservador, que tentaria equilibrar o paciente ou pelo menos daria uma chance dele se equilibrar sozinho. Mesmo que esta chance seja baixa, às vezes a eliminamos ao submeter o paciente ao grande insulto de uma cirurgia cardíaca. Não posso dizer que sei qual é o certo, mas precisamos reconhecer a incerteza desta situação. Muitas vezes, heurística da agressividadetorna os médicos certos de que esta seria a conduta correta, confundindo gravidade extrema com plausibilidade extrema.
O que sabemos é que muitos desses pacientes morrem na cirugia. Daí pensamos, "era muito grave, iria morrer de qualquer forma.” Será?
Precisamos dar um passo atrás e refletir sobre a mentalidade do médico ativo, que faz demais sobre a premissa more is more. O bom médico é aquele que faz muito quando deve fazer muito e sabe recuar quando há dúvida. O treinamento psicológico de pilotos em cockpit de aviões deveria ser aplicado na medicina. Lá, o piloto é orientado a se houver dúvida cancelar a decolagem ou arremeter o pouso (princípio da hipótese nula).
O artigo do JAMA Internal Medicine não prova conceitos, mas provoca nossa reflexão analítica, baseada em uma observação do mundo real. O artigo nos permite discutir mais uma vez o paradigma do less is more. Nos lembra da possibilidade de heurísticas do pensamento médico, enfatizando a o paradigma da medicina baseada em probabilidade (evidências) como uma forma de nos prevenir contra estas armadilhas de pensamento.
E de quebra, esta evidência nos permite ir ao congresso do ACC em março sem peso na consciência, e pensando que talvez nossas pequenas férias poderão ser benéficas para os pacientes.
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