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quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Medicina financeira: a ética estilhaçada.

Sobrinho Lv. Rio de Janeiro: Editora Garamond; 2013. 336 P.


Maria Guadalupe Ramírez-Contreras1
1Universidad de Guadalajara, Guadalajara, México. pikysmorgan@hotmail.com


O parque dos Tyranossaurus health

Como resenhar um livro de ensaios essenciais à crítica da medicina atual cujo formato não é usual? Talvez procurando descrevê-lo, tentando indicar sua gênese e traços do autor para esclarecer suas peculiaridades de forma e conteúdo.

Parte da explicação pode estar na origem do trabalho: uma dissertação de mestrado em bioética que não foi defendida, mas se ampliou e se transformou numa “tese” – que está entre aspas – porque tampouco foi formalmente defendida em nenhum curso de doutorado. Mas, foi concluída por obra da iniciativa perseverante do autor ao longo de alguns (não poucos) anos.

Outra parte da resposta talvez se deva ao fato de Luiz Vianna Sobrinho ser um médico com experiência clínica agregada à atuação como gerente técnico de um plano de saúde de autogestão de uma instituição pública de pesquisa, ensino, serviços e produção de insumos em saúde.

As referências da obra são acadêmicas, com um grande número de citações e notas de rodapé, porém, ao mesmo tempo, envereda por momentos de ousada explicitação de surpreendentes anedotas, intensas experiências pessoais e fascinantes alusões cinematográficas e literárias.

A linguagem utilizada assume, por vezes, uma contundente ironia que se articula e sintoniza de modo integrado com o justificável sentimento de indignação diante do contexto paradoxal no âmbito do Complexo Econômico-Industrial da Saúde, no qual as “contas não fecham”, até porque não têm como fechar conforme é demonstrado no trabalho... Também considero importante enfatizar tanto a coragem quanto a capacidade de explicitar e detalhar amplamente as fontes do imenso festival de mal-estares configurado pelas práticas medicínicas, seus atores e suas montagens.

Neste contexto proliferam:

  • As práticas em que médicos vão se afastando do ideal de serem profissionais liberais, e se tornando cada vez mais neoliberais, “gestores das condições de saúde” como prestadores de serviços padronizados (sob medida, mais insatisfatórios ou menos, segundo a forma de pagamento do ato médico), dirigidos aos supostos pacientes;

  • A interferência abusiva das empresas farmacêuticas e de equipamentos médicos na sedução de médicos com agrados que transitam de modo obscuro pelos meandros de uma ética acrobática, interferindo de modo evidente na prescrição de medicamentos, próteses e órteses a pacientes;

  • As práticas de hospitais e planos de seguros de saúde que mal disfarçam sua visão predominantemente mercantil da atenção à saúde a ser oferecida a seus usuários;

  • A transformação precarizante dos “pacientes” em “clientes” ou “consumidores”.

Por sua vez, as ciências biomédicas e epidemiológicas sustentam uma perspectiva exacerbada na produção de evidências, metanálises e revisões sistemáticas sem levar em conta pressupostos metafísicos não explicitados quanto à noção de “realidade” em questão, nem aspectos que são incluídos, não incluídos e apagados nos procedimentos de pesquisa em saúde, segundo autores dos estudos sociais da ciência.

Ademais, há de se levar em conta que a produção de conhecimentos é contextual e situada. E, nesse caso, é relatada a interferência das empresas farmacêuticas nos resultados de ensaios clínicos que favorecem determinadas drogas. E, também, a omissão de publicação de resultados de pesquisas que não estabelecem dados favoráveis às drogas estudadas. Tal configuração gera a produção de protocolos e diretrizes que refletem, de alguma forma, o gerencialismo utilitarista, que, por vezes de modo hipócrita, veiculam cuidados que tendem a ser inevitavelmente insatisfatórios sob o ponto de vista da qualidade da atenção à saúde.

Esse panorama dá margem à utilização pelo autor de uma alegoria monstruosa para descrever o atual estado das coisas que configuram a medicina financeira: o Tyranossaurus health – metáfora inspirada no filme “Elefante” dirigido por Gus Van Sant sobre o massacre da escola de Columbine (Estados Unidos). É o diretor do filme que explica que o título irônico é explicitamente uma homenagem a um cineasta britânico – Alan Clarke, que realizou um documentário sobre a violência religiosa na Irlanda, considerando-a algo “tão fácil de ignorar quanto um elefante na sala de jantar”.

Dessa maneira, a hipocrisia mencionada anteriormente que não cessa de se atualizar nos contextos de atenção à saúde, pode ser sintetizada metonimicamente, entre outras dimensões apresentadas no livro, pelos interesses financeiros dos médicos. Isso aparece, segundo Luis Vianna Sobrinho, em situações em que o mote é o de “oferecer o melhor da medicina”, há médicos que são capazes de: no caso de, por exemplo, precisar treinar o seu aluno ou assistente, ao testar um novo método ou mesmo uma nova prática, de o fazer mesmo que seja escondido. Receber incentivos pelos procedimentos que solicita; receitar um medicamento que custa mais de cinco vezes do que um similar, ganhando “crédito” na indústria farmacêutica; uma vez tendo cumprido a sua jornada, tendo terminado o seu plantão, cumprido a sua tarefa, esperado os 15 minutos de atraso, tendo feito o que o plano paga, tendo ido até onde sua especialidade abrange, tendo preenchido corretamente o prontuário, tendo explicado ao outro familiar, já considerar que fez o que “devia” fazer; negar a autorização para um procedimento, mesmo sem ver o paciente, porque lhe ordenaram que diminua os custos.

Em suma, são perpetradas frequentemente muitas ações que se localizam num contexto de geração de condições para a ocorrência de erros médicos.

Enfim, durante a leitura, vão se descortinando falas, cenas, situações as quais muitos agregarão a suas eventualmente sofridas experiências como acompanhantes e como pacientes – cuja etimologia sinaliza sua condição relativa ao sofrimento, sendo indevidamente transformada na acepção do termo compatível com aqueles que suportam resignada e passivamente os maus tratos que não cessam de ser produzidos.

Guardadas as proporções e as diferenças de veículo e formato, importa dizer que o livro pode ser encarado como uma manifestação de desconformidade, aos moldes dessas que aconteceram surpreendentemente nas ruas do Brasil em meados de 2013. Ele exclama: “– Nossas condições de saúde são precárias!”. E explica o porquê.

Ao terminar da leitura, é inevitável a avassaladora sensação de premência diante das montagens cínicas naturalizadas que sustentam as enormes limitações com que os sistemas de assistência à saúde costumam oferecer sua atenção. Ou, melhor dizendo, empregando um engenhoso, ainda que incômodo, oximoro citado no livro: sua “desatenção cortês”.

Luis David Castiel
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil.
luis.castiel@ensp.fiocruz.br

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