Ao longo dos últimos 30 anos, a Reforma Psiquiátrica possibilitou a criação de rede de atenção na comunidade para as pessoas em sofrimento psíquico
‘Caminhava por entre aquelas construções cinzas. Algo de um profundo desejo de voltar se misturava com o cheiro característico daquele lugar — creolina, ureia e fezes — cheiro que sai do corpo, mas não da memória. Nestes espaços encontravam-se pessoas circulando nuas. Por vezes rastejavam ou se largavam inertes no chão gelado ou fervente do pátio.’ Este cenário poderia ser transmutado para um filme sobre os campos de concentração nazista. Mas se repetia muito próximo de nós, nos hospícios brasileiros.
A história de horror dos grandes hospitais psiquiátricos no Brasil já foi descrita em diversas publicações. No entanto, ao longo dos últimos 30 anos, processo de mudança do modelo de cuidado em saúde mental, a Reforma Psiquiátrica, possibilitou a criação de rede de atenção na comunidade para as pessoas em sofrimento psíquico. Este cuidar em liberdade através de Centros de Atenção Psicossocial (Caps), moradias assistidas, projetos de cultura e geração de renda, faz com que hoje o Brasil seja considerado internacionalmente um dos principais modelos de cuidado em saúde mental.
Entretanto, temos um ministro da Saúde que parece desconhecer este processo. Nomeou para coordenação nacional de saúde mental um psiquiatra que por vários anos foi o diretor-médico do maior hospital psiquiátrico da América Latina. Este com história de posicionamentos públicos de defesa da ampliação de leitos e críticas à Reforma Psiquiátrica quando ainda em projeto. Diversas entidades já se posicionaram em contra a nomeação. As ruas foram tomadas por familiares, usuários, trabalhadores e gestores comprometidos com a Reforma Psiquiátrica. Por dois dias na mesma semana o Centro do Rio pôde assistir ao grito da luta antimanicomial.
Esta desastrada indicação teve dois aspectos fundamentais: o primeiro, sobre sombras, traz para a realidade que é necessário engajamento permanente na luta pela garantia do cuidado em liberdade, pois espectros como Valencius Wurch, representantes da indústria da loucura, sempre estarão buscando um portal para retornar. O outro aspecto, o mais importante, é sobre vidas, que se cruzam, que se levantam e gritam novamente por uma sociedade sem manicômios. Todo o apoio à ocupação em Brasília.
Ana Paula Guljor é pesquisadora Laps/Fiocruz
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