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Um quadrado de concreto azulejado com argolas de ferro nas laterais, onde pessoas passavam dias amarradas sem água, comida e higiene. Sem colchão ou cobertores. Assim eram as camas da Casa de Saúde Dr. Eiras, o maior manicômio privado da América Latina. Esse horror, aparentemente além do dizível, precisa ser lembrado no momento em que o médico Valencius Wurch, diretor da Dr. Eiras nos anos 1990, é cotado para assumir a Coordenação Nacional de Saúde Mental
Por Daniela Lima e Matheus Pichonelli
“O hospício, ou manicômio, caminha inevitavelmente para o fim (…). Sua persistência está muito mais relacionada ao fator econômico do que ao valor terapêutico ou social”, Paulo Amarante.
Muito já foi dito sobre a irrepresentabilidade do horror: algumas experiências são tão devastadoras e brutais que não seria possível representá-las – pois certos detalhes, talvez os mais traumáticos e terríveis, sempre escapariam. Mas são justamente essas experiências que precisam ser exaustivamente relatadas para que não entremos em ciclos de repetição e esquecimento.
Um quadrado de concreto azulejado com argolas de ferro nas laterais, onde pessoas passavam dias amarradas sem água, comida e higiene. Sem colchão ou cobertores. Assim eram as camas da Casa de Saúde Dr. Eiras, o maior manicômio privado da América Latina, construído em Paracambi, por Leonel Miranda, ministro da saúde de Costa e Silva, no período da Ditadura Militar. “Um campo de concentração”, “um monstro”, “um pesadelo de violência”, “os funcionários andavam armados com porretes e agrediam os pacientes”, “era uma indústria da loucura, as pessoas eram recolhidas nas ruas e jogadas lá”, “o governo pagava para que os pacientes piorassem”, “as pessoas morriam de doenças curáveis”, “o abandono total”, “até o ar era irrespirável pelas péssimas condições de higiene”. Esses são alguns relatos de médicos e pacientes sobre a entidade fechada em 2012, por ordem judicial, em razão de graves denúncias de maus tratos.
Esse horror, aparentemente além do dizível, precisa ser lembrado no momento em que o médico Valencius Wurch, diretor da Dr. Eiras nos anos 1990, é cotado para assumir a Coordenação Nacional de Saúde Mental. Em 1995, Wurch criticou a Reforma Psiquiátrica, que ele considerava “ideológica”, e defendeu a existência de manicômios contra o projeto que pretendia substituí-los por outras formas de atendimento.
A indicação foi recebida como um golpe na Reforma Psiquiátrica – que ainda está em andamento, já que é um processo de constante expansão. Atualmente, 2.241 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) estão em funcionamento em todo o país, de acordo com o Ministério da Saúde. Seria preciso dobrar o número de unidades para que o país tivesse uma média de ao menos um centro especializado em cada município. Entre 2011 e 2014, foram criados 878 leitos de saúde mental em hospitais gerais, em articulação com os demais componentes da RAPS (Rede de Atenção Psicossocial) para garantir a continuidade do cuidado.
Dois meses após a nomeação do deputado federal Marcelo Castro (PMDB-PI), no Ministério da Saúde, numa estratégia do governo federal para tentar acalmar uma das muitas alas do PMDB da Câmara, o nome de Wurch surge como ameaça de Contrarreforma Psiquiátrica. Jogada nas mãos de neoaliados para rearticular a base de apoio no momento em que a presidenta Dilma Rousseff corre o risco de perder o mandato, a gestão do Ministério da Saúde tornou-se um ponto de tensão com os movimentos sociais. O ministro da Casa Civil, Jacques Wagner, e a presidenta do Conselho Nacional da Saúde, Maria do Socorro de Souza, já receberam uma carta assinada por mais de 600 entidades da área de saúde preocupadas com a possibilidade de Wurch assumir o posto estratégico.
Pessoas x Diagnósticos. Em 1979, Foucault escrevia sobre a institucionalização da loucura: “isolamento, interrogatório particular ou público, tratamentos-punições, como a ducha, pregações morais, encorajamentos ou repreensões, disciplina rigorosa (…) relações de vassalagem, de posse, de domesticidade e às vezes de servidão”. Diante da ineficácia da ‘manicomização’, médicos como Paulo Amarante pensaram a Reforma Psiquiátrica: “a luta contra a institucionalização diz respeito à ideia de destruição do manicômio, ou melhor, do aparato manicomial, enquanto práticas”.
A Reforma Psiquiátrica não foi um projeto de técnicos. Envolveu médicos, pacientes, familiares e a comunidade – é, portanto, um movimento social. A Reforma reinscreveu a psiquiatria numa matriz de direitos humanos. Segundo Sérgio Alarcon, psiquiatra e doutor em saúde pública, “a Reforma Psiquiátrica ampliou as possibilidades de cuidado para pessoas em sofrimento psíquico. Antes dela, a internação era a única opção”.
Um dos eixos fundamentais da Reforma é não reduzir as pessoas aos seus diagnósticos. Não desumanizá-las. Para isso foram criados instrumentos (pensamento, práticas e instituições) que permitem condições materiais e simbólicas para que os pacientes conquistem autonomia e emancipação. Para que recuperem a dignidade e reconstruam a cidadania. O especialista acrescenta que “os manicômios interrompiam o convívio social e as relações afetivas: segregavam e eram ineficientes”. Depois da Reforma, foram criados os CAPS, que são instâncias de convívio, cuidado e troca de afetos. Segundo Alarcon, os CAPS constroem um projeto terapêutico singular porque levam em consideração não apenas o indivíduo, mas a família e o território em que ele está inserido. “Tentamos corresponder às complexidades de uma vida. Os manicômios se transformaram em campos de concentração porque reduziam a humanidade das pessoas”.
A frase “Por uma sociedade sem manicômios”, usada pelo Movimento Antimanicomial, não significa que pessoas em crises graves não serão cuidadas e, em última instância, internadas em enfermarias ou nos próprios CAPS que funcionam 24h; significa uma mudança no paradigma manicomial – o próprio termo “internação” foi substituído por “hospitalidade” e “paciente” por “usuário”, o que não indica apenas uma mudança simbólica, mas prática.
Octavio Serpa, professor e pesquisador do IPUB/UFRJ, ressalta que a frase se refere ao fim de um “modo de fazer”, cujas bases eram violência, desumanização e indiferença. Desta perspectiva, a Reforma Psiquiátrica é uma ética do cuidado. “Não estamos falando dos manicômios apenas como lugares físicos, embora esses pensamentos e práticas tenham se estabelecido neles: o manicômio a ser destruído é um pensamento e uma prática.”
O pensamento e a prática manicomial são parte de um ciclo de produção e reprodução de violência, que desestrutura e adoece os pacientes.
Não se trata de ideologia contra a ciência, como tentou reduzir Wurch. A Reforma Psiquiátrica propõe uma ciência que abrace (e se beneficie de) posições éticas inegociáveis. Artigos publicados nas mais importantes revistas psiquiátricas, como a International Journal of Mental Health, indicam que a Reforma apresentou avanços científicos nunca obtidos por pensamentos e práticas retrógradas, que se apoiam antes no lucro gerado por esquemas perversos de internação compulsória e sem prazo, do que em evidências científicas.
Paracambi, assim como Barbacena, ficou conhecida como a “cidade dos loucos”. As duas cidades foram marcadas por holocaustos manicomiais. É preciso se lembrar disso: olhar fotos, reler o processo, dar um rosto aos antigos pacientes. Impedir que esse “estranho golpe de força” aprisione o futuro.
Confira aqui a nota de associações e entidades de psicologia e sáude mental, enviada ao Conselho Nacional de Saúde (CNS), contra a nomeação do Dr. Valencius W. Duarte Filho para o cargo de Coordenador de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde.
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