Por Conceição Oliveira
Hoje, depois da meia noite eu e Pablo Villaça saímos do lançamento de seu livro e fomos direto para Santa Cecília visitar a escola EE Fidelino Figueiredo ocupada desde 2 de novembro.
Ao chegarmos nos deparamos com pais e professores em uma barraca improvisada sentados em vigília para a proteção dos alunos e da escola das constantes investidas da polícia. Segundo relato dos professores e pais, viaturas policiais passam durante toda a madrugada, param pedem documentos. Uma delas ironiza: “Os senhores ainda não decoraram nossos nomes?“
Sentamos e ouvimos. Os professores que apoiam a luta dos estudantes (a diretora está do lado do governador) revesam-se todas as madrugadas até as 8 da manhã desde o início da ocupação.
Encontramos dois professores de Artes, dois de Biologia, um de Química, três voluntários que já doaram aulas durante a ocupação, alguns pais e uma aluna do 1º ano do Ensino Médio que é responsável pela comunicação da ocupação, acompanhada da mãe e do irmão.
Pouco tempo depois reconheço uma das professoras de biologia, Ester. Ela trabalhou comigo no Colégio Companhia de Maria durante 10 anos. Me emociono, dou-lhe um longo abraço, sinto um orgulho imenso dela que já aposentada, com sua manta boliviana protegendo-se do sereno, segue firme na luta. Choro em silêncio.
Vejo o brilho nos olhos desses professores, uma delas me diz: Isso é uma revolução, um marco, a educação não será como antes depois desta ocupação. Todos estamos transformados, sinto um orgulho danado desses meninos e meninas. O professor de química que é diabético e hipertenso e não pode passar longas horas sem ir ao banheiro me diz: Nosso maior problema é o banheiro. Não entramos na escola, nem para usar o banheiro, estamos aqui tão somente para protegê-los e proteger a escola. Mas contamos com a solidariedade da comunidade. Os moradores nos deixam usar o banheiro, trazem café com e sem açúcar, dia desses parou um táxi aqui e deixou, sem brincadeira, uns cem quilos de alimentos. Ai dentro tem meninos e meninas de 13, 14 anos, eles são nossos heróis.
O professor de arte complementa: Antes eu achava que a escola era uma ilha isolada, que ninguém ligava para as péssimas condições de trabalho que temos, para o abandono em que está a escola pelo governo do estado, sem reformas, sem pinturas, sem reparos, com cadeiras quebradas, laboratório velho, sem papel higiênico, sem material de limpeza. Eu não tinha ideia que a comunidade nos achava importante e aí veio a ocupação e aí eu descobri que não estamos sozinhos. E aí eu descobri a solidariedade. Eu me enchi de esperanças e é isso que me faz vir aqui ficar de vigília até meu corpo aguentar e até Alckmin retroceder desta decisão absurda de fechar nossa escola.
Pergunto para a aluna responsável pela comunicação da ocupação o que ela está aprendendo neste processo, ela para, reflete, me olha nos olhos e diz: Responsabilidade. Eu aprendi que somos responsáveis pelo futuro. Eu não estou lutando pela minha escola só para mim, eu estou lutando para o meu filho que um dia vai nascer, eu estou lutando pelas crianças que ainda nem existem. Se a gente não lutar, tudo vai ficar como está e eu não quero isso. Eu quero o futuro. Eu aprendi a me organizar coletivamente. A gente se reúne com outras lideranças de outras ocupações, só falamos por telefone, não trocamos mensagens em redes sociais, não as estratégias, a gente só passa pelo whats informações. Estratégias a gente discute frente a frente. Me conta que tem regras rígidas, comissão pra tudo, que todo mundo cresceu.
Seu professor de Química se enche de orgulho e me confessa: É uma excelente aluna, não só sabe química, sabe a melhor lição da vida: cidadania.
Logo depois chegam mais três pessoas: duas mulheres e o filho de uma delas e mais um pai de aluno da ocupação. O pai chama o filho conversa um pouco, pergunta se precisa de algo, fica um pouco na vigília e se vai por volta das 2 da manhã porque trabalha o dia todo. As mulheres não tem filho na escola, uma mora em Bauru e o filho está em tratamento no HC e ela e o filho são hóspedes na casa de Rita, a senhora que chegou com o café para passar a noite junto aos pais, mães e professores na barraca improvisada.
Pergunto à Rita o que ela faz ali se não tem filho na escola e ela responde que está ali em apoio à luta dos estudantes e faz uma avaliação do que está ocorrendo. Peço para gravar seu depoimento, ela concede, ouça até o fim, vale cada palavra:
Como Rita, eu e Pablo fomos de madrugada até a escola por solidariedade à luta desses meninos e meninas corajosos, defensores do futuro. Saímos de lá renovados em nossa fé na humanidade. Temos jeito, sabemos diferenciar a barbárie da civilidade e nossos mestres são estes garotos e garotas que nos ensinam que existe futuro e que vale a pena lutar por ele, mas ele só chegará se empreendermos uma luta diária, se assumirmos nosso papel de adultos responsáveis pelas gerações futuras, como nos ensinou Hannah Arendt, na luta contra o nazismo e para a formação de uma nova sociedade para que ela jamais permita o retorno do fascismo.
Como educadora, agradeço a esses meninos e meninas que já ocuparam mais de 220 escolas, que estão sendo barbaramente agredidos, espancados, violentados por uma polícia que envergonha com seu despreparo, truculência e violência gratuita, por um governador surdo que mercantiliza o Estado e não garante o básico exigido pela Constituição, por uma Justiça e um MP que no mínimo são coniventes com tanta brutalidade.
Esses meninos e meninas tem a coragem, ousadia e esperança que nós adultos muitas vezes perdemos ou burocratizamos. Eles merecem toda a admiração e respeito que conquistaram socialmente. Eles merecem toda a proteção que o mundo adulto e as leis têm obrigação de darem a eles. Eles merecem que renascemos, que nos reinventemos, eles merecem o futuro.
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