Martin Winkler acaba de publicar sua novela “Abraão e filhos”. Sua rígida opinião sobre o sistema de saúde Frances continua intacta em seus estudos sobre a medicina na prática cotidiana.
Tradução do texto espanhol primeiramente traduzido do Francês por: Cassius Vinicius
Em espanhol:Martin Winkler Los prejuicios de los medicos son los prejuicios de clase
Em francês: Martin Winckler Les prejuges des medecins sont des prejuges de classes
Em francês: Martin Winckler Les prejuges des medecins sont des prejuges de classes
Reproduzimos abaixo a entrevista feita por Caroline Constant (junho de 2016) com o médico e romancista, Martin Winkler que foi publicada primeiramente no jornal L’Humanité.
Martin Winkler: Na frança, a seleção dos estudantes de medicina ocorre sobretudo entre os jovens das classes mais favorecidas. E esses estudantes são educados para tratar pacientes de sua própria classe e não de setores operários nem sub-proletariados.
É por isso que a formação medica deixa a entender, para os estudantes, que dentro da própria medicina existe uma elite, e que isso os motiva a tornarem-se parte dessa elite. Pensando nesse sentido, isso significa que “alguns” valem mais que “outros”.
Entrevistador / Martin Winkler
Nota do tradutor: O termo “médico generalista” será usado nesta tradução para designar o popularmente conhecido como “clínico geral”, já que em medicina difere-se o médico especialista e o médico generalista, sendo “clínico geral” raramente usado entre esses profissionais.
Então para esses que “valem” menos que outros, encontramos um clínico geral e emergência...
O médico generalista está no último patamar da escala. Me lembro de um cirurgião que dizia, no começo dos anos 80: “Um paciente que machucou a mão em um acidente. Se fosse um violinista, os médicos não iriam tratá-lo da mesma forma que o fariam se fosse um trabalhador da construção. Porque o operário só precisa do dedo polegar e do indicador para segurar a picareta”. Isso é monstruoso.
Dessa vez, seu exemplo mostra uma medicina de classes...
Exatamente! Os preconceitos dos médicos são os preconceitos de classe. Eles são educados como se fossem aristocratas, como se tivessem mais valor que as enfermeiras. Por exemplo, entende-se que as obstetras francesas não querem falar sobre o parto domiciliar com parteiras, sob o pretexto de que esse procedimento não é tão seguro como o parto no hospital, embora o primeiro exista em toda a Europa, sem problema algum.
Mais uma vez, estamos diante de uma questão de poder e de controle sobre os corpos. Não é uma questão científica, já que o mundo médico francês é o menos científico dos países desenvolvidos. Basta ver o exemplo da contracepção, da qual a grande maioria dos médicos não sabem prescrever, e que apesar do senso comum, proíbem as mulheres de certos métodos.
Esses argumentos são autoritários. Para cada 500 especialistas em uma faculdade de medicina, há um generalista como docente. No entanto, a proporção de generalistas e especialistas é de 4 para cada 5. Todos os estudantes de medicina deveriam ser instruídos para serem médicos generalistas e uma parte deles, depois de cinco anos de experiência, pudessem se especializar, se assim desejassem, demonstrando seu interesse pela especialidade.
Não há necessidade de se tornar um ginecologista se você odeia as mulheres, as despreza e pensa que são burras.
Quais são os pilares dos quais deveríamos nos apoiar para mudar essa realidade?
Em Montreal, no Canadá, existe um programa que se chama “o paciente companheiro”. Os pacientes que sofrem de doenças crônicas (e portanto se auto conhecem) participam do ensino de medicina. São eles que indicam aos médicos quais são suas prioridades. Os médicos tem uma formação científica e uma relação real, já que os pacientes os lembram constantemente de como se sentem.
O grande problema da medicina na França é que, enquanto existem médicos extraordinários, honrados e devotos, eles jamais serão um exemplo. Os exemplos se formam por seus prestígio e realizações técnicas, mas nunca por suas qualidades de relação. Não existem conferências nem cursos que digam aos estudantes: “escutem as pessoas e se não quiserem curar os pobres, procurem outra profissão. Por exemplo, se quiserem impor os seus valores sobre os de uma mulher que lhes diga: ‘Não quero ter filhos e quero me submeter a uma laqueadura’, então procure outro trabalho”. Para alcançar esses resultados, seria preciso eliminar o elitismo das faculdades de medicina. Mas essas faculdades são construídas sob uma orientação elitista.
Quando escrevi a obra Trois Médecins (“Os três médicos”), os membros da Associação de Amigos de Alejandro Dumas me perguntaram “Como você fez para transportar Os três Mosqueteiros a uma faculdade de medicina?” E eu respondi “Muito simples, as faculdades de medicina estão estruturadas como a França de Luis XIII: um vice-reitor que tem dois chefes de clínica, dos quais ele tem o controle de ambos. A estrutura das grandes escolas francesas é aristocrática”.
Meu pai era médico, o que tecnicamente nos convertia em burgueses. Mas a mãe do meu pai era trabalhadora da limpeza. Nunca esquecemos de onde viemos. Eu não tinha uma ideologia de menino rico quando comecei a exercer medicina. Minha filosofia era: “você vai curar todo mundo, dar pontos [em um] é [a mesma coisa que] dar pontos [em outros]”.
Quando você começou a escrever suas novelas, era uma forma de expor em palavras suas emoções? De sair da linguagem médica puramente técnica? Ou simplesmente o hospital e a consulta estão cheios de boas histórias?
Sempre quis escrever ficção e em um ensaio é difícil expressar as emoções. Mas na ficção pode-se contar histórias cheias de vida. E essas historias estão carregadas de sentimentos, lições e de uma forma de ver o mundo. Quando escrevi La Vacation (“a sessão”), tratei de explicar não só a dor moral das mulheres que abortam, mas também a dor moral dos profissionais, sem julgar ninguém. Não critico o que não sofro. Depois, na obra Maladie de Sachs (a doença de Sachs), o que me pareceu importante era dar voz aos pacientes e dizer que “o importante é o que a pessoa pensa de si mesma”. Então, eu tinha um objetivo moral: resistir ao discurso paternalista, o discurso técnico, o discurso moralista do mundo médico através da ficção e na voz dos pacientes.
Em todos suas obras, você mostra também trata as responsabilidade das enfermeiras, cuidadoras...?
A profissão está atravessada por assuntos de classe. Durante muito tempo, os médicos puderam se manter a frente da administração. Mas já não podem mais, porque a administração tornou-se completamente autoritária. Ao menos uma vez, os médicos não são encarregados das áreas onde trabalham as enfermeiras, as cuidadoras, as parteiras ou suas colegas. Eles se matam entrem si por pequenos privilégios.
Se nesse sentido, existisse uma solidariedade, poderiam se unir para dizer: “Aqui existe gente suficiente para a quantidade de trabalho que há”. Imaginou a força que teriam? É muito simples entrar em greve em um hospital sem prejudicar os pacientes, basta apenas não preencher os documentos administrativos. Nesse hipótese, o hospital não poderia se administrar e nós continuaríamos cuidando dos pacientes.
Eu fiz isso há uns 25 anos atrás em um hospital de Le Mans, no setor de Interrupção Voluntária de Gravidez. Havia uma lógica contável: era necessário dez sessões para que pudessem vir outros médicos com as despesas pagas. Dissemos que não. Sob minha supervisão, continuamos fazendo nosso trabalho sem preencher os formulários. Quem informou foi um centro privado de interrupção voluntária de gravidez, pois estavam a mando da Segurança Nacional e suas tarifas era muito mais elevadas que as reais. Depois de quinze dias, a administração se deu conta de algo que nunca havia percebido antes. Tivemos êxito.
No entanto, hoje os serviços estão minados de lutas pelo poder. Um exemplo é o que acontece no Hospital Pompidou (no dia 17 de dezembro de 2015 o cardiologista Jean-Louis Megnien se suicidou, vitima de assedio). As lutas pelo poder não existem quando não há poder. Ou, em todo caso, quando há um poder democrático exercido pelo conjunto dos trabalhadores.
Essas lutas pelo poder estão sempre presentes em “Os três médicos”. Mas também inclui o papel das industrias farmacêuticas na formação dos médicos?
Na América do Norte, as universidades decidiram que os estudantes não receberão mais visitas das farmacêuticas. A partir do momento no qual o docente e os estudantes estão submetidos a influência da industria, não podem pensar nos termos científicos. A indústria funciona em termos de venda, não de humanidade. Nos Estados Unidos ou no Canadá, os médicos não acham que são imunes a influência das indústrias. Acreditam que a industria é contrária aos interesses dos pacientes. E se defendem utilizando argumentos científicos.
Na França é fácil ouvir os médicos dizerem: “trabalho com um indústria, mas sou completamente objetivo”. Os médicos têm uma responsabilidade importante, tanto prescrevendo, como oferecendo pontos de vista. Se deixam-se guiar pela indústria, servem de correia de transmissão para os estudantes, pacientes e outros profissionais. Isso é moralmente inaceitável.
Existe uma forma de combatê-lo por completo. Fundamentalmente, é exatamente o que está acontecendo na França neste momento (a mobilização social), com um governo que nada faz além do que quer, tapando os ouvidos para as demandas populares.
De onde vem a ameaça que endurece o sistema a partir de dentro?
É muito difícil mudar a partir de dentro de uma estrutura “imutável”. Mudar uma docência ou um curso, é uma gota no oceano. Quando você fala de empatia em uma sala de aula pela manhã, durante a tarde seus estudantes estarão trabalhando em um lugar dirigido por alguém que se comporta como um aristocrata, e o exemplo prático é mais forte e mais difícil de responder que o exemplo teórico que você, como professor, deu de manhã. Não é que os estudantes não queiram. É que a medicina é uma profissão que se aprende por emulação e prática.
Os leitores afirmam que seus livros colocam o paciente em confronto com o médico. Você considera isso uma pequena vitória?
Não nego o impacto que minhas novelas possam ter em um plano individual. Como piada: em 2002, havia uma crônica na radio France Inter que foi retirada depois que a usaram para falar da indústria farmacêutica. Essa famosa indústria disse “somos benfeitores da humanidade”, “Winkler mente”. Isso significa, na verdade, que com minha pequena crônica de três minutos, desafiei eles. Isso é muito interessante.
Isso significa que a voz do povo é uma ameaça para as estruturas do poder na França. Por acaso, eu sozinho represento um perigo que vai derrubar a indústria farmacêutica mundial? Você ri de mim? Escrevo livros para que as pessoas se sintam melhor, mais preparadas e menos indefesas do que se sentiam antes de começarem a ler. Mas não acredito que isso tenha uma maior importância. Meu apoio individual é uma obra coletiva.
“Abraão e filhos” (Abraham et fils) e o escritor
Franz acorda em um hospital parisiense sem se lembrar de nada. Junto ao jovem, está a figura de seu pai, Abraham Farkas a observar-lhe. Franz foi vítima de uma acidente na Argélia em 1962. Como foi? Onde está sua mãe? O jovem não tem resposta e seu pai permanece calado. Pai e filho se instalam em um povoado da região central da França e reconstroem sua relação, moradia e história. Um magnífico relato sobre a filiação individual e coletiva.
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