no Justificando
Nesta segunda, 22, a Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas (PBPD) publicou uma entrevista com o Promotor de Justiça no Estado de Goiás e Colunista do Justificando, Haroldo Caetano, sobre o tema de sua especialidade: a manicomialização.
Haroldo, que é doutorando em Psicologia Social pela Universidade Federal Fluminense e crítico das comunidades terapêuticas destinadas à internação de dependentes químicos como forma de tratamento, falou sobre a realidade encontrada no país no tratamento oferecido por pessoas com transtornos mentais.
Embora tenham sido rechaçados pela legislação, os manicômios nunca foram erradicados: "O movimento antimanicomial é um movimento que não para porque o manicômio está sempre se reinventando", afirma. Para ele, "os manicômios são espaços desconhecidos pela população brasileira".
O Promotor de Justiça ainda destaca que muito da sobrevivência dos manicômios é responsabilidade do Poder Judiciário, o qual "manda internar compulsoriamente pessoas nas mais variadas condições psicossociais. Então não podemos afirmar que houve uma superação do manicômio no Brasil. Isso nunca aconteceu".
Veja como ficou:
Plataforma Brasileira de Política de Drogas: O que é o louco infrator?
Haroldo Caetano: As questões são todas polêmicas, há muitas divergências em cima desse termo. Mas louco infrator é apenas uma forma pela qual se convencionou chamar aquela pessoa que, em razão de um transtorno mental, praticou um ilícito penal. Se essa é uma expressão politicamente correta ou não, isso é uma discussão à parte. O fato é que essa expressão não está totalmente consolidada, mas é a que de alguma forma identifica esse sujeito. Ela não é uma expressão bem aceita por muita gente. Mas por outro lado, há quem defenda – inclusive na Psicologia – o uso da expressão, até para que se tire um pouco dos mitos em torno da loucura. Outras pessoas vão chamar esse sujeito de “pessoa com transtorno mental em conflito com a lei”. Fica uma expressão extremamente longa e pouco didática para muita gente. Então “louco infrator”, digamos, democratiza um pouco a linguagem e passa a ser mais acessível às pessoas, de maneira geral.
PBPD: Existe um tratamento especial por parte da Justiça nessas situações, como a substituição de pena por medida de segurança, por exemplo?
HC: Exatamente. Até 1940 no Brasil, a figura da medida de segurança não existia. Em 1940, com o Código Penal, ela é instituída no Brasil. Mas até essa data, o louco infrator era simplesmente absolvido: ele não recebia nenhum tipo de sanção e muito menos medida de segurança. Em 1940, no entanto, a regra mudou e o louco infrator passou a ser alvo dessa nova medida instituída. Ele não tem responsabilidade criminal em função do transtorno mental, mas deve ser tratado compulsoriamente na forma de medida de segurança. No contexto em que surgiu, em meados daquela década, a medida de segurança alcançava outras pessoas em outras circunstâncias (não apenas os loucos). Em 1984, o Código Penal sofreu outra reforma, mas a medida de segurança em relação ao louco infrator permaneceu intacta. Do ponto de vista jurídico, essa figura vem definida no artigo 26 do Código Penal que estabelece a inimputabilidade do sujeito que em razão do transtorno mental pratica o crime.
PBPD: Como a temática das drogas influencia nessa discussão?
HC: Existe uma discussão muito presente no Brasil, que é representada pelo movimento antimanicomial, que questiona a figura do manicômio judiciário, que historicamente é um lugar onde se depositavam e ainda se depositam – eu acho que esse é o verbo mais adequado, mesmo – as pessoas que, em função da loucura, praticam crimes. E que são, na maioria das vezes, abandonadas à própria sorte. Mas esse sujeito que ia para os manicômios era normalmente o psicótico, aquele sujeito que tinha uma doença mental definida especificamente dentre os quadros de psicose.
O manicômio judiciário enquanto lugar desse louco psicótico tem sido esvaziado. Há ainda, evidentemente, uma disputa, não é algo pronto e acabado, mas há uma discussão muito forte que tem feito com que os manicômios judiciários sejam rediscutidos. Esse sujeito que carece de atendimento de saúde mental deve, a partir da provocação feita pelo movimento antimanicomial, não ser internado compulsoriamente num manicômio judiciário, mas sim tratado adequadamente dentro dos instrumentos e recursos instituídos sobretudo a partir da Lei Antimanicomial, de 2001. No entanto, houve um movimento em que esses espaços passaram a ser ocupados justamente pelas pessoas que fazem uso nocivo de substâncias, especialmente ilícitas. Isso tem trazido um fenômeno interessante que é o redesenho desses manicômios como espaços não mais de permanência do louco psicótico, mas também da pessoa que faz uso problemático de substâncias. É aí que a questão da drogadição entra no debate: o sujeito que passa por essa experiência da dependência química e sofre por isso, acaba sendo encaminhado para essas instituições que têm também se redesenhado nacionalmente, especialmente com as figuras das comunidades terapêuticas.
O que tem acontecido é que a pessoa que faz uso abusivo de drogas tem sido também o alvo da internação psiquiátrica. A questão da drogadição vem sendo enfrentada por uma parte da sociedade que pretende que esse sujeito seja internado pura e simplesmente acreditando que a internação seja um instrumento de cura.
PBPD: A Lei Antimanicomial completou 15 anos neste ano. Mesmo assim, o discurso de internação é novamente trazido à tona no governo interino. É possível dizer que estamos passando por um processo de remanicomialização da saúde mental? Ou esse processo nunca foi completo no Brasil?
HC: Nunca houve a erradicação do manicômio. O movimento antimanicomial é um movimento que não para porque o manicômio está sempre se reinventando. E essa discussão sobre a dependência química deixa muito evidente que a utilização da internação psiquiátrica como resposta para problemas no campo da saúde mental nunca deixou de existir. O uso da internação psiquiátrica na modalidade asilar não acabou, embora tenha sido proibido em 2001, com a Lei Antimanicomial, que veda a internação em condições asilares. Mesmo com essa proibição, ainda assim isso continua a acontecer – até, inclusive, com a chancela do poder judiciário, que manda internar compulsoriamente pessoas nas mais variadas condições psicossociais. Então não podemos afirmar que houve uma superação do manicômio no Brasil. Isso nunca aconteceu.
Agora, de fato, como as políticas de saúde mental não se implementam na velocidade desejável, as demandas da [frente] da saúde mental, principalmente no campo da drogadição, estão sempre presentes. E eles [pessoas que fazem uso problemático de drogas] são muito abordados na mídia de forma sensacionalista, superficial e sem uma discussão adequada sobre o próprio fenômeno do uso de drogas. Dessa forma, a [ideia de] internação acaba persistindo, apesar da proibição prevista na lei. O campo da saúde mental é disputado por dois grupos fortes: o do movimento antimanicomial e o dos que propõem exatamente o contrário disso. O que se tem na prática é que o manicômio ainda sobrevive – e sobrevive com um viés populista. E essa possibilidade de restauração do manicômio está materializada nas comunidades terapêuticas espalhadas pelo país. Existe espaço para esse populismo manicomial se materializar. E o que é mais sério ainda é que apesar de muitas dessas comunidades terapêuticas serem espaços privados, a gente vê um movimento dentro do poder público no sentido de retomar a figura do manicômio, embora agora com outra denominação.
PBPD: Após ação do MPF em São Paulo, a Justiça Federal suspendeu uma resolução do Conad que permitia o repasse de recursos públicos para entidades de acolhimento não enquadradas na categoria de Saúde. Só isso é o suficiente? As comunidades terapêuticas ainda compõem a Rede de Atenção Psicossocial.
HC: Não é suficiente, mas é um bom começo. O que o MPF conseguiu em São Paulo foi importante porque ao se proibir o repasse de verbas públicas você seca a fonte que mantém essas instituições muito vivas. Essa questão deve se desdobrar – pelo menos eu espero que isso aconteça – no próprio questionamento das portarias do Ministério da Saúde que autorizaram a entrada das comunidades terapêuticas na Rede de Atenção Psicossocial. Inclusive foi utilizado nas portarias um eufemismo para a internação asilar. Porque se a lei proíbe a internação asilar, as portarias permitem o “acolhimento residencial” por parte das comunidades terapêuticas. Ora, o que é esse acolhimento residencial? É uma internação!
Essas portarias, e eu pretendo participar dessas discussões, precisam ser questionadas porque elas têm uma validade precária. Elas não passam pelo crivo da Lei Antimanicomial porque as disposições dessa lei são taxativas quanto à proibição da internação asilar. Então as comunidades terapêuticas em hipótese alguma poderiam ter sido inseridas [na RAPS]. Mas como foram, essa medida que o MPF conseguiu em São Paulo é um passo importante para que a gente comece a discutir essa figura dentro da Rede de Atenção Psicossocial.
PBPD: Como o senhor vê os hospitais de custódia hoje? E como o Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator (PAILI), em Goiás, pode ser uma alternativa à internação?
HC: Esse tema é ainda cercado de muita invisibilidade. Os manicômios são espaços desconhecidos pela população brasileira. Segundo o censo de 2011, quase 4 mil pessoas ainda estavam internadas nos manicômios judiciários no Brasil inteiro.
Pouca gente sabe o que é um manicômio judiciário. Às vezes até se surpreende com alguma matéria, se sensibiliza com a questão, mas não consegue sequer imaginar o que é o manicômio judiciário de Franco da Rocha, o maior do país, por exemplo. Eu estive lá e é difícil descrever o que é.
Não é muito diferente do que aquele cenário que o “Holocausto Brasileiro” descreve. [livro de Daniela Arbex, “Holocausto Brasileiro – Vida, Genocídio e 60 Mil Mortes No Maior Hospício do Brasil” retrata a violência cometida contra os internos do antigo Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais]. É um espaço que deveria ser um motivo de muita vergonha para todo e qualquer brasileiro. E isso ainda é uma política pública no Brasil. A simples existência dos manicômios judiciários deveria ser motivo para deixar todos nós enrubescidos de vergonha. Porque o que acontece ali dentro passa muito longe de qualquer possibilidade de tratamento. As pessoas acreditam que o louco infrator é levado para o manicômio para ser tratado. Não é. O que se tem nos manicômios judiciários é uma máquina de triturar gente.
É um espaço onde a tortura é a essência da própria existência do manicômio. O manicômio é um instrumento de tortura contra o louco. E nós temos isso ainda em pleno funcionamento no Brasil, mesmo com tantas disposições legais e com todos os avanços obtidos no campo do atendimento, do acolhimento e do tratamento em saúde mental. Mesmo assim, continuamos a torturar as pessoas dentro dos manicômios. A história vai demonstrar o quanto nós temos sido cruéis com essa população que, acima de tudo, carece de atenção, atendimento, tratamento e inclusão – e não de prisão.
O manicômio é a prisão do louco. Como o louco não pode ser punido criminalmente, essa prisão se converte automaticamente em tortura e violência. Porque ele não tem base legal de existência, de aplicação. Entretanto, juízes do Brasil inteiro mandam gente para os manicômios a pedido do Ministério Público, sob as barbas da Defensoria Pública, do sistema de saúde e de segurança pública como um todo, naturalizando a figura do manicômio nesse contexto todo.
O extremo oposto do manicômio judiciário no Brasil hoje é o PAILI, que nós conseguimos constituí-lo em Goiás em 2006. Claro, não é a oitava maravilha do mundo, não é um programa perfeito, pronto e acabado. Está em constante desenvolvimento, mas que já demonstrou para o país que é possível responder a esse fenômeno da violência praticada pelo louco não com a prisão, mas sim com políticas de atenção psicossocial. O PAILI vem, em 2006, e estabelece que a RAPS é universal – inclusive para o paciente em medida de segurança. Então aquele sujeito que praticou o crime e que foi submetido judicialmente à medida de segurança em Goiás não vai para o manicômio judiciário. Ele vai ser inserido na RAPS. E cada caso vai ser analisado a partir de suas próprias circunstâncias. E é aí que entra a política de saúde que exige para cada caso um projeto terapêutico singular. É preciso que exista um projeto de vida, de inclusão, de atendimento e de tratamento para cada sujeito submetido à medida de segurança. E isso vem sido feito pelo PAILI, que vem mostrando que é possível viabilizar essa política que tem a liberdade como o principal recurso terapêutico. E isso tem funcionado muito bem.
PBPD: Como o senhor viu a auto-indicação do Osmar Terra para a vaga no CONAD?
HC: É difícil hoje a gente falar que existe um problema neste governo em relação à saúde mental, até porque ele ainda não se manifestou sobre as políticas da saúde mental. O que a gente tem muito claro é o remanescente do governo Dilma, que tinha na coordenação de saúde mental uma pessoa que foi diretora de um manicômio. Mas o que se desenha não é muito diferente daquilo. Por mais que seja ilegítimo o governo interino de Michel Temer, é difícil dizer que há alguma diferença de política no campo da saúde mental. Agora, o que se desenha para o futuro realmente não é nada animador. Possivelmente nós teremos que enfrentar um recrudescimento desse populismo manicomial. O nome e o currículo de Osmar Terra denunciam que não serão dias melhores. Mas temos que ver concretamente o que virá. Mas o panorama, repito, não é nada animador.
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