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domingo, 11 de setembro de 2016

Entidades se unem contra proposta do Ministério para diminuir cobertura dos planos de saúde

Plano (im)popular


Primeiro, veio a ideia: o ministro da Saúde do governo interino de Michel Temer, Ricardo Barros, anunciou a intenção de autorizar a venda de “planos de saúde populares”, com cobertura inferior à mínima estabelecida pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Depois, veio a decisão: em 5 de agosto, foi publicada no Diário Oficial da União portaria do Ministério da Saúde que instaura um grupo de trabalho para discutir o projeto de “plano de saúde acessível”. 

A premissa seria aliviar os gastos com o financiamento do Sistema Único de Saúde, nas palavras do ministro: “Queremos mais recursos e, como estamos nessa crise fiscal, se tivermos planos acessíveis com modelos de que a sociedade deseje participar, teremos R$ 20 bilhões ou R$ 30 bilhões a mais de recursos que serão colocados para atendimento de saúde. Isso vai aliviar nosso sistema, que está congestionado”.

A medida conseguiu o feito de unir entidades da Saúde e do direito do consumidor que nem sempre estão do mesmo lado: da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) ao Conselho Federal de Medicina (CFM), todas as organizações do setor se posicionaram contrárias à revisão do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde. A exceção foram as corporações que representam os interesses das seguradoras.

Ronald Ferreira dos Santos, presidente do Conselho Nacional de Saúde, órgão que não foi consultado ou convidado a integrar o GT, rechaçou o argumento de que planos de saúde populares podem aliviar o subfinanciamento da saúde pública. “Temos de alocar mais recursos e garantir o preceito constitucional da responsabilidade do Estado com o direito à saúde, bem como da universalidade, gratuidade e integralidade do SUS”, comentou ele à Radis.

Fora da área de cobertura

A Abrasco e o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) anunciaram que pretendem mover ações judiciais caso o governo federal autorize a venda de planos de saúde de cobertura reduzida ou segmentada. Em nota conjunta, afirmaram que o ministro desconhece a triste realidade dos usuários de planos de saúde, em especial daqueles que adquirem planos “falsos coletivos”, os de menor preço e de rede credenciada restrita.

“Os planos de saúde já cometem muitos abusos: negações e exclusões de cobertura, barreiras de acesso para idosos e doentes crônicos, reajustes proibitivos e rescisões unilaterais de contratos, demora no atendimento, número de médicos, hospitais e laboratórios incompatíveis com as demandas dos usuários, baixa qualidade assistencial e conflitos na relação entre planos e prestadores de serviços. Os planos populares, de qualidade inferior, irão agravar essa situação”.

O estudo “Judicialização da saúde suplementar”, coordenado pelo professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP Mário Scheffer reforça o posicionamento de Abrasco e Idec. Dados preliminares da nova fase da pesquisa, aos quais Radis teve acesso, indicam que entre 2010 e 2015 o número de ações judiciais contra planos de saúde cresceram aproximadamente cinco vezes no estado de São Paulo. Em 2010, foram julgadas 2.294 ações, enquanto que, em 2015, foram julgadas 11.480. No mesmo período, o número de clientes de planos de saúde no estado passou de 17.379.121 para 18.337.165. Ou seja, as ações aumentaram em velocidade muito maior do que a da população usuária de planos de saúde.

Barato que sai caro

“Planos baratos, populares ou acessíveis, chame como quiser chamar, já existem no mercado e são uma tragédia”, comenta o pesquisador. Scheffer se refere especialmente aos planos ambulatoriais, permitidos por lei, que oferecem apenas a possibilidade de realizar consultas e exames e por isso são mais baratos. Hoje, eles representam apenas 4% dos 50,3 milhões de consumidores em planos de assistência médica. “Esse tipo de plano não pegou. A população sabe que é um engodo, que vai permitir acesso a consultas e exames simples, mas não vai prover cuidado no caso de problemas mais graves, como internações”.

Outra maneira de se pagar menos é aderir a planos “falsos coletivos”, uma brecha encontrada para driblar a regulação: como os planos coletivos (aqueles oferecidos pelos empregadores a seus funcionários) podem ter por lei reajuste mais alto do que os dos planos individuais, as seguradoras criam obstáculos à adesão aos planos individuais e agregam um número reduzido de participantes — integrantes de uma mesma família, amigos ou pessoas que sequer se conhecem — em associações de poucas dezenas de pessoas. “Esses planos também são armadilhas para quem compra”, observa Scheffer. “São convidativos no preço, mas se revelam uma arapuca, porque basta uma pessoa ficar doente que a seguradora propõe ajustes absurdos”.

A característica desses planos, indica o pesquisador, é ter uma rede credenciada muito ruim: um hospital, um laboratório, poucos médicos. “Pela incapacidade da rede, esses planos vão excluir e os clientes vão ter que procurar a Justiça”. Em análise de uma amostra de 4.059 decisões, proferidas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, nos anos de 2013 e 2014, Scheffer concluiu que o principal tema de reclamação (47,67%) era a exclusão de cobertura — cirurgia, tratamento para câncer, internação, órtese e prótese, medicamento, exame, materiais necessários a cirurgia, home care, internação em UTI, fisioterapia, hemodiálise, honorários da equipe médica e consulta médica. 

O que menos?

Se planos acessíveis já existem, o que estaria por vir? Por enquanto, pouco ou nada se sabe, de fato, sobre o conteúdo da proposta. Frases do ministro, porém, dão indícios do que esperar: “Precisamos criar um mecanismo que possa simplificar a regulação para permitir que a oferta de serviço à população seja mais ampla. As pessoas aderem ou não, livremente. Ninguém é obrigado, e quem não está satisfeito não precisa continuar pagando o plano de saúde”.

“Simplificar a regulação” seria diminuir o número de procedimentos, exames e tratamentos com cobertura obrigatória pelos planos de saúde listados no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS. Essa cobertura mínima obrigatória é válida para planos de saúde contratados a partir de 1º de janeiro de 1999 e é revista a cada dois anos. O primeiro foi definido pela Resolução de Conselho de Saúde Suplementar em 1998. Este ano, o rol já foi atualizado, com a inclusão de 21 novos procedimentos, entre eles exames laboratoriais, um medicamento oral para tratamento de câncer em casa e a ampliação do número de consultas com fonoaudiólogo, nutricionistas, fisioterapeutas e psicoterapeutas. 

Segundo a ANS, o processo de revisão do rol conta com a constituição de um grupo técnico composto por representantes de entidades de defesa do consumidor, de operadoras de planos de saúde, de profissionais de saúde que atuam nos planos de saúde e de técnicos da agência. O grupo reúne-se para construir uma proposta que, posteriormente, é submetida à avaliação da sociedade por meio de consulta pública.

A portaria que institui o Grupo de Trabalho para Discussão e Elaboração de Projeto de Plano de Saúde Acessível diz apenas que compete ao GT realizar estudos e elaborar documentos técnicos para a qualificação de Projeto de Plano de Saúde Acessível; realizar estudos de impacto financeiro de sua implantação; e apresentar proposta, em um prazo máximo de 60 dias, considerando os resultados dos estudos e discussão. Entre os integrantes, estão representantes do Ministério da Saúde, da ANS e da Confederação Nacional das Empresas de Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde Suplementar e Capitalização (CNSEG).

A Proteste, associação que atua na defesa do consumidor, criticou publicamente a decisão de se formar um grupo apenas com membros do governo e de operadoras de planos de saúde, sem que houvesse representantes dos usuários, e enviou ofício à Presidência, ao Ministério da Saúde e à Casa Civil pedindo sua inclusão no grupo. “Uma decisão dessa magnitudade não pode ser tomada sem se ouvir o consumidor, comenta a coordenadora institucional do Proteste, Maria Inês Dolci, à Radis.

Para ela, há risco de retrocesso com a redução da cobertura mínima obrigatória. “A Lei nº 9.656, de 1998, conseguiu diminuir as queixas em relação a reajustes abusivos e a exclusão de cobertura”, avalia Maria Inês. “Em um primeiro momento, pode parecer que os planos acessíveis vão desafogar o SUS. Mas, em um segundo momento, será possível perceber um gargalo: a exclusão de cobertura vai levar as pessoas de volta para o sistema público”.

Quem ganha

A Associação dos Servidores e demais Trabalhadores da Agência Nacional de Saúde Suplementar (Assetans) também reforçou os avanços das Leis nº 9.656/98 e 9.961/2000 e se mostrou contrária à proposta do governo, afirmando que “certamente só beneficiará as operadoras, dada a redução da cobertura assistencial exigida pela ANS”. “Um produto de menor preço corresponderá a uma entrega menor — quer seja na quantidade, quer seja na qualidade, direcionando para o SUS os procedimentos de média e alta complexidade, de custos mais elevados”. 

Segundo a entidade, a venda de “planos populares” traz a falsa impressão à população de que o acesso à saúde será facilitado, quando, em realidade, “sua cobertura excluirá a população vulnerável, integrada sobretudo por doentes crônicos e idosos, por se limitar a consultas e exames de menor complexidade”.

Nota do Conselho Federal de Medicina também aponta que, se implementada, a proposta do governo interino não deve favorecer a inclusão de doentes crônicos e idosos, resultando em planos limitados a consultas ambulatoriais e a exames subsidiários de menor complexidade, que não trarão solução para os problemas do SUS, não evitarão a procura pela rede pública e não terão impacto no financiamento do sistema. Para o CFM, “a autorização da venda de ‘planos populares’ apenas beneficiará os empresários da saúde suplementar, setor que movimentou, em 2015 e em 2016, em torno de R$ 180 bilhões”.

“É um plano para salvar os planos”, afirma Ronald Ferreira dos Santos. “O raciocínio embutido na proposta e expresso pelo ministro é o de diminuir os gastos públicos em saúde e aumentar os gastos das famílias. O governo está indo no bolso da população”. Abrasco e Idec reforçam que nenhum sistema público universal, em nenhum país do mundo, adota “planos populares” privados como alternativa para a organização da assistência à saúde e prevê que, se concretizada, a medida, juntamente com a redução e desvinculação do financiamento público, poderá inviabilizar o Sistema Único de Saúde e o direito à saúde — inscritos na Constituição Federal.

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