Lenir Santos
Elida Graziane
Francisco Funcia
Nelson Rodrigues
Áquilas Mendes
I - Introdução
Fonte de grande atraso no Brasil é a falta de prioridade no combate sistemático das desigualdades sociais, com prejuízos severos ao seu desenvolvimento social, lembrando que a pobreza atinge 75% da população. Esse cenário secular parece ter acomodado na sociedade e no Estado a noção de nação-cidadã, impedindo profundamente a consolidação da cidadania, incompleta ainda neste século XXI.
Esse fato parece trazer às autoridades públicas certa leniência que as levam, nos picos de crise política, econômica, social, fiscal, moral, etc., a optar por medidas que afetam negativamente a cidadania e a população mais pobre, interrompendo a ainda incipiente implantação e consolidação de políticas públicas garantidoras de direitos sociais fundamentais.
Não é sem causa que a Constituição prevê medidas de proteção a esses retrocessos históricos, as cláusulas pétreas, concebidas para coibir tentações de se voltar atrás, colocando em riscos direitos essenciais, conforme recentes afirmações de alguns economistas e autoridades públicas de que os direitos constitucionais não cabem no PIB (lembramos que o PIB mede tão somente as riquezas do país (públicas e privadas) sem olhar para as exclusões sociais, podendo um país como o Brasil ser a 7ª economia do mundo e ocupar o 73º lugar em IDH).
A própria vinculação de recursos mínimos (pisos) para o custeio da saúde e educação, fundamentais para o desenvolvimento social e econômico, é também considerada cláusula pétrea por integrar processualmente o núcleo desses direitos que têm custos para se efetivar. Essa medida de proteção da efetividade do direito não foi prevista aleatória ou dadivosamente; foi concebida exatamente como resguardo desses direitos em relação à própria história do país.
Temos que sair desse senso comum de que as crises licenciam os governantes a interromper o processo de garantia de direitos. O fato é que, como até hoje não está sedimentado na sociedade e estado que saúde, educação, previdência e assistência social são direitos essenciais para a consolidação da cidadania, é comum em crises como a atual, que o canto da sereia seja diminuir os recursos públicos que sustentam direitos para realizar ajustes. É o caso da DRU, surgida em 1994, provisoriamente, hoje com 22 anos, que nesse período retirou, anualmente, 20% dos recursos mínimos da saúde e educação sem que outras medidas mais justas fossem adotadas.
Por isso, neste momento de nova crise econômica é importante primeiro reconhecer a necessidade de adoção de medidas de ajustes e segundo ter alternativas ao congelamento por 20 anos dos gastos públicos, conforme proposto pela PEC 241/2016, a fim de não permitir nova estagnação e rompimento da ainda incompleta rede de proteção social, que nem mesmo atingiu suas metas de saúde e educação (para ficar somente nestes), prejudicando a população, aprofundando as desigualdades, iniquidades e injustiças sociais seculares. Não se pode mais cair no canto da sereia de que somente congelando gastos públicos primários como saúde, educação e outros direitos, se sairá da crise. A inteligência e velhas experiências devem servir à criatividade.
É ultrapassada a proposta de imobilizar o desenvolvimento desses serviços por 20 anos quando há mobilidade em suas necessidades em razão da inflação real de determinadas áreas como a saúde, altamente onerada pela inovação tecnológica; crescimento demográfico; envelhecimento populacional que se expande rapidamente no país; violência social que produz mortes e mutilações; inovações tecnológicas sempre onerosas; ausência da consolidação das ações de proteção social mínima.
Imobilizar recursos é o mesmo que subtrair o direito. Para suprimir direitos humanos consagrados na Constituição, é preciso uma nova assembleia nacional constituinte e a vontade soberana da população. Estagnar a efetividade do direito pela via orçamentária é a mesma coisa, com outro nome, mas alguns governantes tecnocratas e/ou ludibriadores fazem parecer que não é. Primeiro pela incompreensão do texto da PEC 241; segundo, porque essa incompreensão não permite de imediato a correlação com congelamento de gastos públicos e consequentemente, com suspensão de direitos pela estagnação.
Para resistir ao ajuste fiscal que suspenderá a eficácia imediata dos direitos fundamentais (verdadeiro legado civilizatório da Constituição de 1988), é preciso apontar alternativas possíveis e propor às autoridades públicas e parlamentares o repensar do contido na PEC 241/2016 para que se possa realizar o ajuste das contas públicas sem supressão de direitos constitucionais.
Em respeito à Constituição, o primeiro passo é analisar os instrumentos de promoção do reequilíbrio das contas públicas, pois há no ordenamento jurídico normas a ser revisitadas para evitar falaciosa argumentação da impossibilidade orçamentário-financeira (reserva do possível) no tocante à garantia de direitos sociais constitucionais.
Logo de saída, é imperativo relembrar que, enquanto perdurarem as receitas decrescentes em face às despesas autorizadas da lei orçamentária anual, o regime do art. 9º, § 2º da Lei de Responsabilidade Fiscal claramente indica a impossibilidade de contingenciamento das despesas obrigatórias.
Quais despesas discricionárias poderiam sofrer contingenciamento e usualmente não têm sido limitadas? Quais receitas poderiam vir a reforçar os cofres públicos, mas têm sido indevidamente renunciadas, deixadas prescrever ou não se tem buscado efetivamente arrecadá-las? Qual controle de conformidade constitucional seria possível na alocação dos recursos públicos para assegurar a máxima eficácia dos direitos sociais? Outra questão também a considerar, qual reforma tributária e etapas passíveis de implantação imediata, que poderia ser feita para onerar os mais ricos e não os mais pobres como é o nosso sistema atual? De tais questões, passamos tratar, sem a pretensão de esgotar as possibilidades de propostas de ajuste e visando colaborar com pensamento novo a respeito desse tema.
II – Propostas alternativas à PEC 241/2016
Primeiro e o segundo exemplos: residem na perspectiva de que – se o ente político não tem mantido em dia a folha de salários, está inadimplente com os pisos constitucionais em saúde e educação ou tem dado causa a qualquer outro inadimplemento de obrigação de despesa assentada constitucional ou legalmente – caberia invocar em interpretação sistemática as vedações do artigo 73, inciso VI e do artigo 75 da Lei 9.504/1997.
Nesses casos, o Judiciário não estaria a ferir o princípio da separação de poderes ao questionar a assunção de despesas com publicidade institucional dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos federais, estaduais ou municipais, ou das respectivas entidades da administração indireta, salvo em caso de grave e urgente necessidade pública, assim reconhecida judicialmente, bem como ressalvada a propaganda de produtos e serviços que tenham concorrência no mercado, mesmo que esses valores não sejam tão elevados, a atitude demonstra cumprimento da lei e seriedade no trato com as contas públicas.
Tampouco afrontaria o ordenamento uma decisão judicial que impugne o pagamento com recursos públicos na contratação de shows artísticos durante a vigência de contingenciamento de despesas que ponha em risco o cumprimento das despesas obrigatórias e, em especial, a eficácia dos direitos fundamentais.
Terceiro exemplo: reconhecer que em tempos de tão severa crise econômica é desarrazoada a assunção de despesa com novos serviços e obras não essenciais, sem que estejam assegurados os recursos destinados a cumprir obrigação formal preexistente para a execução do que já está em andamento e com cronograma prefixado, e os destinados a atender situações de emergência e de calamidade pública. Eis a necessária leitura conjugada do art. 42 da LRF com a alínea “a” do inciso VI do art. 73 da Lei das Eleições. Obra não vinculada a direitos essenciais deveriam passar a consumir menor recurso para garantir os demais.
Muito embora essas restrições sejam tradicionalmente invocadas na contenção apenas da gastança típica dos períodos pré-eleitorais e no final de mandato, elas precisam ser apresentadas como soluções jurídicas já vigentes, como alternativa à pura e simples suspensão inconstitucional da eficácia dos direitos à saúde e à educação por duas décadas, como pretende o art. 104 que a PEC 241/2016 visa inserir no ADCT da Constituição.
Quarto exemplo: - necessidade de melhor controle sobre as renúncias de receitas sem lastro na correspondente e indispensável medida compensatória, sobretudo as que são concedidas por prazo indeterminado, diante do seu impacto desarrazoado em face das premissas contidas na Lei 8.666/1993. Importante lembrar que renúncia fiscal face à lei, são gastos, despesas públicas.
A LRF exige que a validade e o início da vigência da renúncia fiscal sejam condicionados à instituição efetiva de medida compensatória, com duração de três anos (exercício de instituição e nos dois seguintes). A Lei Geral de Licitações e Contratos prevê ser vedada a celebração de contratos com prazo de vigência indeterminado, que gerem obrigações de gasto para o Estado ad aeternum. Renúncia de receita é gasto tributário e, assim como os contratos administrativos — donde resultam os gastos rotineiros da administração pública — não poderia ser instituída sem delimitação temporal.
Alias a renuncia fiscal de qualquer ordem, em especial as vinculadas às contribuições sociais, que por estarem vinculadas aos direitos universais de cidadania, deveriam ser objeto de acordo democraticamente debatido, por prazo determinado, com metas a cumprir e prestação de contas a realizar, de modo claro, não burocrático, mas transparente o suficiente para justificar o gasto público da renúncia.
Cabe controle de validade sobre a perpetuação de todas as renúncias fiscais (no sentido jurídico do § 1º do artigo 14 da LRF), cujas medidas compensatórias provenientes da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição, tenham sido comprovadas apenas por três anos, os quais, por sua vez, já tenham transcorridos.
Nesse passo cumpre chamar a atenção para as renuncias fiscais de contribuições sociais do art. 195 da Constituição, destinadas ao financiamento da seguridade social. Essas renúncias deveriam sempre ser de curto prazo e objeto de acordo escrito, fiscalizado quanto aos seus resultados na saúde, assistência e previdência social. Hoje elas estão sendo fiscalizadas e analisadas quanto à garantia de direitos universais vinculados as três áreas da seguridade? Esse aspecto é relevantíssimo para que a seguridade social não se veja esvaziada de suas finalidades constitucionais financiadas com recursos com destinação específica para direitos sociais.
É preciso que haja nulidade das renúncias fiscais concedidas para além dos três anos da LRF e que se passe a exigir acordo escrito com metas do benefício social das renúncias. A instituição indeterminada de qualquer redução discriminada de tributos ou contribuições e de quaisquer outros benefícios tributários fere balizas de constituição e perpetua ilegal e inconstitucionalmente privilégio fiscal no orçamento público, sem o menor controle público e social.
Atualmente, nossos controles, a título de responsabilidade fiscal, são frouxos não só sobre as medidas compensatórias que amparam a instituição das renúncias, como também sobre a compensação dos impactos fiscais causados pelas despesas obrigatórias de caráter continuado (art. 17 da LRF). Talvez a melhor medida de curto prazo para o enfrentamento de ambos seja a qualificação detida do conteúdo dos anexos na lei de diretrizes orçamentárias (art. 4º, § 2º, V da LRF) e na lei orçamentária anual (art. 5º, II da LRF), a respeito da comprovação das medidas compensatórias que lhes correspondem, a cada ano e enquanto vigorarem.
Além do mais é imperioso a publicização do valor global dessas renuncias e que se exija, sob pena de irresponsabilidade fiscal, demonstrativo anual metodologicamente consistente sobre as estimativas de impacto e as medidas de compensação das renúncias e das despesas obrigatórias de caráter continuado na LDO e na LOA de cada ente; esse controle é necessário até mesmo para que a sociedade conheça os inúmeros impasses distributivos no orçamento público. (Ver anexo da PLDO 2017 com as estimativas para 2017 a 2019). Como princípio, todas renuncias fiscais (gastos tributários), com suas finalidades e avaliações de custo-benefício e controle, devem ser previa e amplamente debatidos com a sociedade, suas representações e no Legislativo. A sociedade tem acesso a essas renuncias, autorizadas por lei e que atingem mais de 300 bilhões de reais? E com maior dificuldade de identificação no caso das Contribuições Sociais?
Quinto exemplo: - o risco de prescrição da dívida ativa e a necessidade de o gestor esgotar todas as formas lícitas de executá-la, como, por exemplo, o protesto extrajudicial. Trata-se, aliás, de não dar causa a dano ao erário, na forma do art. 10, X da Lei 8.429/1992, em seara já pacificada até mesmo pelo Conselho Nacional de Justiça.
Sexto exemplo: - o combate à sonegação fiscal que aponta valores que atingem por volta de meio trilhão de reais, cujas cobranças e recursos dos devedores na CARF são objeto de investigação da polícia federal, a Operação Zelotes, com pouca divulgação para a sociedade dos seus montantes e seu andamento e consequências punitivas.
Sétimo exemplo: - revisão da legislação do imposto de renda para criar faixas de rendimentos superiores às atuais, com alíquotas mais elevadas, de modo a tributar os que estão no topo da pirâmide social. O estudo do IPEA de Gobetti e Orair apontou para o fato de que cerca de 70 mil contribuintes do IR com renda anual média de R$ 4,2 milhões têm cerca de 70% de sua renda isenta.
Oitavo exemplo: - revisão da estrutura tributária brasileira para que se reduza a incidência sobre produção e consumo e aumente a incidência sobre patrimônio, renda e riqueza. Nessa linha, por que não criar tributação sobre as grandes movimentações financeiras e sobre as grandes fortunas e heranças, bem como aumentar a tributação sobre tabaco, álcool, motocicletas de luxo, aeronaves, iates? Por que não fazer projeções dos valores que poderiam ser arrecadados com esses impostos e divulga-los para formação e participação da opinião social? Essas propostas implicam, para alguns, abandonarem privilégios e vantagens incompatíveis com a realidade, como a insustentável altíssima taxa de juros pagos pelos títulos públicos brasileiros, causa maior da insuficiência das contas públicas, e que transferem parcela substantiva de recursos públicos para os mais ricos.
Nono exemplo: - enfrentamento da questão do limite de gasto para com o pagamento de juros da dívida pública. Em 2016, de R$720 bilhões (60 bilhões mensais e 02 bilhões diários) aos rentistas, majoritariamente do grande capital especulativo, apontando maior controle, tanto quanto se propõe para o congelamento de gastos sociais. O déficit fiscal oficialmente previsto para 2017 é de R$ 170,5 bilhões. Por que não rever a taxação dos dividendos dos rendimentos das aplicações financeiras e divulgar projeção de arrecadação? Por que não investigar e acompanhar as aplicações no mercado financeiro internacional de 230 mil brasileiros, cada uma acima de US$ 1 milhão e os respectivos lucros, dividendos, etc.? Porque não investigar rapidamente os depósitos brasileiros no exterior, incluindo os offshores e paraísos fiscais, estimados na operação “Suiss Leaks” em US$520 bilhões, a fim de tributá-los e/ ou repatriá-los? Ainda, merece lembrar que todo o resultado fiscal primário decorrente de cortes de gastos públicos primários e a elevação de tributos, tem sido destinado, há uma década e meia, para o financiamento da dívida pública.
Décimo exemplo: - revisão do manejo abusivo das relações federativas que constrangem os municípios a assumirem o custeio de despesas de competência de outros entes, em lesão não só ao próprio art. 62 da LRF, mas também aos deveres de cooperação técnico-financeira da União e estados para com aqueles (art. 30, incisos VI e VII da Constituição Federal).
É necessário desonerar as prefeituras das responsabilidades por despesas com pessoal temporário e material de consumo, destinadas, por exemplo, ao apoio de delegacias de polícia, destacamentos da Polícia Militar etc. além do mais, também é necessário garantir aos municípios transferências compatíveis às obrigações com população de cunho regional imposta ao município, como é o caso da saúde, nem sempre compensada no limite da despesa real realizada com pessoal (que conta para o limite da LRF apenas de um ente), estrutura, equipamentos, serviços.
A continuidade dos serviços públicos estaduais e de alguns serviços federais não pode ser exigida do erário local sob pena de ferir o interesse local municipal e impor prejuízo à consecução de suas próprias competências primárias. As partidas e contrapartidas da cooperação federativa hão de ser fiscalmente equilibradas, sendo necessária até a inversão do fluxo da judicialização na área da saúde para fins de conter determinadas omissões e abusos inconstitucionais que afetam o ente próximo quando a responsabilidade pode ser do mais distante. Ou vivemos numa federação cooperativa real ou somos um arremedo do que dispõe a Constituição sem nenhuma providência concreta.
Dessa longa série de possibilidades de controle para que o ajuste fiscal seja conforme o ordenamento brasileiro já vigente, o décimo e último exemplo pode ser extraído diretamente do art. 169 da Constituição, em sua leitura integrada, não só com os limites de despesa de pessoal fixados na LRF, mas, sobretudo, com o art. 94, inc. IX e X e do art. 95 do Decreto-Lei 200/1967.
Trata-se da imperativa necessidade de fixar a quantidade de servidores em acordo às reais necessidades de funcionamento de cada órgão, para, na sequência, eliminar ou reabsorver o pessoal ocioso, na forma do preconizado na própria lei. Para conter situações de inchaço e excesso de gasto de pessoal, não basta o corte linear de 20% de comissionados e a redução eventual de servidores não estáveis. É preciso também promover uma reflexão técnica profunda sobre a demanda real de servidores, para fins até mesmo de aferição de desempenho pessoal (nos moldes do art. 41 da Constituição) e institucional, conforme as necessidades do serviço público e da sociedade.
III – Conclusões
As mudanças de fato necessárias para reequilibrar as contas públicas e promover o custeio constitucionalmente adequado dos direitos fundamentais, não demandam inovação legislativa, mas reclamam, isso sim, compromisso sério para: - conter a financeirização e especulação do orçamento público, - alterar o tripé macroeconômico (metas de inflação, superávit primário e câmbio flutuante), - rever privilégios, e - mitigar discricionariedades, abusos, inchaços e frouxidões interpretativas. Quem vende, na realidade brasileira atual, soluções aparentemente novas e drásticas para problemas antigos e culturais, na verdade vende ilusões, algumas delas francamente inconstitucionais e parece não querer de fato passar a limpo os erros que parecem consolidados na gestão pública e na visão de futuro do país. É preciso coragem e atitude para mudar de fato as distorções existentes no país há séculos e não “mudar para tudo continuar como está”.
Outro aspecto não menos relevante diz respeito à saúde que até o presente momento não teve consolidado seu modelo constitucional que impõe a criação de regiões de saúde para alcançar escala, garantir atenção integral à saúde com a atenção básica resolutiva na região em no mínimo 90% das necessidades de saúde da população. É preciso repartir as responsabilidades federativas cooperativas de modo solidário e com segurança jurídica para não onerar o ente municipal, sempre o mais vulnerável pela proximidade com o usuário do serviço e o mais esquecido na relação federativa por distante do poder central. Além do mais, impõem-se melhoria na gestão, controle do alcance de metas, prioridades quanto as reais necessidades de saúde das pessoas e outros aspectos de uma gestão de qualidade.
Afinal, tivemos muitos anos de superávits primários, sem minimizar de forma significativa os efeitos da dívida pública que têm crescido também em função dos elevados juros pagos aos credores dessa dívida. Sem a revisão da política monetária, de nada adiantará a geração de novos superávits primários, desta vez, penalizando severamente a população por meio da retirada de direitos sociais, como propõe a PEC 241.
Como um parêntese, o que mais se ouve de economistas, articulistas, autoridades públicas, é a palavra segurança jurídica para o mercado; ora a mesma segurança jurídica deve ser para os entes federativos na repartição de suas competências, em especial a saúde, para não ser onerado além dos recursos que a União lhe transfere para competências constitucionais comuns (saúde, educação) e também para o cidadão no tocante ao cumprimento de direitos constitucionais.
Nosso ordenamento jurídico assinala claras indicações sobre quais gastos podem ser constrangidos e quais estão salvaguardados de movimentos bruscos de ajuste contingentes. Ao longo dos diversos exemplos aqui arrolados, depreendemos que os limites normativos já existentes para o tamanho do Estado brasileiro residem, em síntese, no nível do comportamento da receita pública, no teto de despesas de pessoal, bem como no limite da dívida consolidada dos estados e municípios, ainda que pendam de regulamentação os limites de endividamento da União.
A PEC 241/2016 foi apresentada em junho/2016 com o intuito de fixar um teto de expansão dos gastos primários do governo, conforme o patamar do que for aplicado em 2016, e corrigido apenas pela variação anual da inflação, com extensão até mesmo para os gastos mínimos em saúde e educação, setores essenciais que já vinham sendo reconhecidamente subfinanciados e tolhidos em suas finalidades constitucionais.
A consequência prática dessa suposta medida indispensável para o equilíbrio das contas públicas implica evidente redução da disponibilidade de custeio dos direitos fundamentais, com o adiamento do cumprimento das obrigações de fazer definidas em lei e na própria Constituição. Um claro cerceamento da efetividade constitucional de direitos sociais por medidas de cunho financeiro de caráter alegadamente transitório, mas que se constitui pelo longo prazo – 20 anos – em um desmonte sem precedente e sem retorno, desestruturando seu desenvolvimento, enterrando por medida transitória constitucional, redigida de modo a fazer sofrer quem quer compreendê-la, fora do senso de clareza e transparência da Carta Magna, afetando de morte a garantia dos direitos fundamentais das pessoas.
Quanto maior a escassez de recursos, maior há de ser o compromisso público de garantia de direitos fundamentais os quais não poderão ser afetados, sob pena de adoecerem e morrerem pessoas por causas evitáveis em nome da melhora dos índices econômicos. A economia deve sempre estar a favor do cidadão e não o contrário e os índices econômicos devem levar em conta os índices do desenvolvimento social.
Alias os serviços de saúde e educação, parecem sempre invisíveis para o desenvolvimento do país, não sendo considerados como elementos cruciais para a qualidade de vida, o desenvolvimento econômico-social e a diminuição da pobreza e das iniquidades e até mesmo para que se tenha consciência cidadã de vigilância das políticas e gastos públicos de modo consequente e qualitativo.
Por isso uma corrente de economistas defende de modo categórico que estabelecer teto para que despesas públicas primárias não venham a crescer para além da inflação do ano anterior é estratégia que não encara a raiz do problema, lembrando que as despesas federais com saúde estão congeladas há dez anos entre 1,6% e 1,7% do PIB. Por isso não é verdade que o principal problema fiscal do Brasil é a vinculação constitucional que garante a aplicação mínima para a saúde e educação contra tentações que aplicações abaixo do mínimo concebível.
O mérito da Constituição foi conseguir convergir pensamentos antagônicos existentes e aprovar direitos e garantias fundamentais, essenciais para que o país pudesse diminuir suas desigualdades, com combate à pobreza, iniquidades sociais, não podendo agora ser afrontada e modificada em sua essência estrutural, que são os direitos dos cidadãos brasileiros, por medida inserta no ato de suas disposições transitórias, por 20 anos, uma contradição em termos.
Importa tornar mais sério o controle dos desequilíbrios fiscais em sua origem e imediatamente, não sendo admissível fazê-lo quando a crise está a produzir desempregos e outras consequências que afetam diretamente as pessoas e suas famílias, como cortes de direitos sem estar legitimado pela sociedade. Congelar drasticamente os recursos desses direitos é aumentar a crise para as pessoas e suas famílias.
A questão é que solução tecnocrática – postergadora de intocabilidade da extrema concentração e iniquidade social - tende a não se importar com a Constituição; ela costuma ser vista isoladamente sem se pensar que educação é fator de superação de futuras crises, tanto quanto a saúde é fator de desenvolvimento econômico porque uma sociedade doente não é produtiva. É preciso definir afinal o que é mais importante: gastar com educação e saúde, ou com incentivos fiscais, subsídios, sonegação, omissão em tributação do capital e patrimônio elevado, dividendos financeiros e juros elevadíssimos. São escolhas das quais a sociedade deve participar conhecendo os números e os reais contribuintes dessas medidas.
Os pisos constitucionais são garantias de não retrocesso em áreas que a Constituição considerou de maior relevância para a sociedade e seu desenvolvimento dada a costumeira invisibilidade de sua essencialidade para o desenvolvimento de um país cidadão. Infelizmente a invisibilidade das necessidades de saúde é gritante como agora. Como se pensar em imobilizar seus gastos para 150 milhões de pessoas sem nenhuma outra proteção quando a mobilidade das necessidades não cessará? E também para os 50 milhões restantes que consomem no mercado parte da proteção á saúde?
É preciso que o governo, o legislativo discutam democraticamente com a sociedade os caminhos para o alcance do equilíbrio das contas públicas, que não ignoramos a sua importância, mas sem impor as mesmas medidas de restrição social e desrespeito a regras constitucionais que exigem dos governantes o dever de erradicar a pobreza e diminuir as desigualdades sociais. Nosso papel aqui é o de cidadãos que querem participar e contribuir com o debate por julgar que outro ajuste pode ser possível.
São Paulo, 24 de setembro de 2016.
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