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segunda-feira, 7 de novembro de 2016

A luta dos Sem Terra faz bem à Saúde

*Por Alexandre Padilha, no Saúde Popular

Já se vão 27 anos, quando ainda era estudante de medicina da Unicamp e fui levado por residentes de pediatria para conhecer um assentamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na então cidade de Sumaré na região de Campinas.

Durante o ano, frequentávamos quase o assentamento quase todo o final de semana. Acompanhava o atendimento feito pelos residentes voluntários, coordenava oficinas de educação em saúde, aprendia muito sobre conhecimentos populares, organizávamos com o movimento um pequeno embrião de um setor saúde – algo que em 1998 foi incorporado como uma diretriz do movimento para todos os seus assentamentos e acampamentos.


Junto ao MST tive a primeira experiência concreta, depois de ter entrado na Faculdade de Medicina, sobre o que é fazer saúde para fora dos livros ou dos espaços hermeticamente condicionados do Hospital Universitário. Ali vivenciei uma visão ampliada de saúde, pratiquei e assisti praticarem, sem sabermos, o que depois a própria produção acadêmica nas salas da Unicamp chamaria de “clínica ampliada”, tão bem defendida pelo professor Gastão Wagner de Souza Campos, atual presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, e por outros colegas da universidade que também pisaram, com centenas de famílias, naquela área ocupada.

Era incrível como na boca daquelas pessoas falar sobre Saúde era falar de trabalho, de terra, de meio ambiente, de autonomia do indivíduo e do impacto de fazer parte de um movimento em tudo isso. Conversas, histórias, pedidos, relatos de sintomas que ouvi naqueles dias ficaram marcados eternamente para a minha vida profissional e como gestor.

Logo depois, em 1990, pudemos propiciar estas vivências para mais estudantes de medicina e da saúde, em parceria com o Movimento, em todo o Brasil. Mais encontros de saberes e histórias, mais projetos profissionais se transformando. Em toda minha trajetória, desde quando supervisionei o Núcleo de Extensão em Medicina Tropical da USP na região Amazônica, quando fui pesquisador do Fundo da Organização Mundial de Saúde (OMS) para Doenças Tropicais, quando fui Ministro e agora como secretário municipal de Saúde de São Paulo e, encontrei muitas pessoas que, nos anos 90, haviam passado pela mesma vivência e que aprenderam com as famílias do MST que “ter saúde é ter a possibilidade de lutar contra tudo que nos agride, inclusive a doença”.

Escrevo sobre isso obviamente em função do atentado brutal à democracia e a livre forma de organização do nosso povo que significou a violenta invasão, que ironia, da polícia à sede da Escola Nacional, ironia redobrada, Florestan Fernandes.

Sem mandado, de arma em punho e balas letais atiradas, mais do que um constrangimento para aterrorizar e somar-se as práticas de ódio, intolerância e criminalização dos movimentos sociais, esta ação junta-se a outras realizadas pelos aparatos policiais e judiciário brasileiros que parecem querer testar se a sociedade reagirá ou não a uma escalada de medidas de um Estado de exceção que se instala no Brasil.

Parece repetir o roteiro de outras escaladas autoritárias e, quando a sociedade acordar, não haverá mais nada e ninguém a defender. Felizmente um conjunto de entidades, lideranças e representantes internacionais já reagiram.

Defender o MST é defender um movimento que, a partir de um longo processo de acúmulo de experiências com o seu povo, colocou, como poucos, a Saúde na centralidade do seu projeto.

O documento de “Princípios e Valores da Saúde no MST”, de 1998, aponta conceitos extremamente avançados e absolutamente aderentes às recomendações da Organização Mundial de Saúde, ao conceito de Saúde da nossa Constituição e às diretrizes da Lei Orgânica do SUS: “a luta da saúde é a luta pela valorização da vida. A luta da saúde é essencialmente a luta pela vida de todas as formas. Neste processo é fundamental fomentarmos a solidariedade, o compromisso com a vida, o cuidado com o outro e a outra, com o meio ambiente que vivemos, como caminho a ser trilhado junto com outros grupos e organizações”.

Não à toa, construímos, pactuamos com estados e municípios na Comissão Intergestores Tripartite e publicamos em dezembro de 2011, quando Ministro da Saúde, a Política Nacional de Saúde para os Povos do Campo e da Floresta. Várias pesquisas e dissertações de pós graduações se embrenharam neste mundo dos assentamentos, buscando compreender e analisar como esta visão ampliada de saúde tomava curso, mesmo diante de uma realidade sempre precária dos riscos e da situação à saúde no nosso meio rural, fruto do menor acesso ao saneamento e aos serviços de saúde e da própria condição das histórias pregressas vividas ou das condições do trabalho.

Todas as pesquisas, sugiro as várias realizadas a partir da ENSP/Fiocruz, encontram aspectos daquilo que o movimento defende para a constituição do setor saúde nos assentamentos: “o desenvolvimento da cultura do cuidado, cultivar novos hábitos de cuidado à saúde com o esporte, artes e organização de festas, cuidar do ambiente domiciliar, dos banheiros, da água, do esgoto, do lixo, dos animais domésticos. Cuidar dos saberes populares, da alegria, da amizade e da solidariedade”. Isso é defender a saúde!

Defender o MST é para aqueles que se emocionam ao reencontrar em um assentamento jovens que nasceram dentro de uma ocupação e que hoje retornam à sua comunidade para trabalhar como agrônomos, educadores, enfermeiros, veterinários ou técnicos em meio ambiente.

Defender o MST é reconhecer o impacto que o programa Mais Médicos tem tido nos assentamentos, fruto da luta da reforma agrária e, sobretudo, reconhecer o suporte que o movimento deu a centenas de jovens nascidos nas áreas de ocupação que foram estudar medicina fora do país por não encontrarem oportunidade de fazê-lo no Brasil à época. Agora estes jovens estão cuidando da saúde do seu povo, inseridos na comunidade assentada, valorizando os saberes populares e ajudando a despir qualquer atitude preconceituosa do SUS.

Defender o MST é agradecer a pronta resposta das cooperativas fundadas e apoiadas pelo movimento quando a cidade de São Paulo, na gestão do prefeito Haddad, buscou mudar a qualidade da merenda escolar para mais de 1 milhão de crianças, trazendo variedade ao cardápio e a introdução de alimentos orgânicos. Feito o primeiro chamado público, estava lá o arroz orgânico produzido por assentamentos do MST em primeiro lugar, com o melhor preço e ótima qualidade.

Toda a discussão sobre saúde e segurança alimentar, as estratégias de introdução de produtos orgânicos na alimentação, o incentivo a termos um parque de produtores pautado na agricultura familiar, o debate sobre o impacto do uso de agrotóxicos na saúde e a defesa de um projeto de uso sustentável dos recursos naturais e de todo o meio ambiente tem tido no MST um aliado de base popular muito importante.

Até admito que pessoas podem ser contra esta visão de saúde e não queiram reconhecer o impacto positivo do Mais Médicos na saúde da população rural em apenas três anos do programa, ou que tenham opiniões diferentes quando o assunto é alimentação saudável. O que é inadmissível é o silêncio diante da violência ao Estado de Direito ocorrida na manhã do dia 3 de novembro. Este silêncio custará muito caro à democracia. Resta-nos fazermos barulho por nós e pelos que silenciam para que não nos tomem tudo que foi construído ao longo de décadas.

*Alexandre Padilha é médico infectologista, atual secretário municipal da Saúde de São Paulo e ex-ministro dos Governos Lula e Dilma.

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