A liberdade se defende de forma incondicional
artigo de Vladimir Safatle* reproduzido na revista do IHU**
Talvez não exista momento mais propício do que este para se lembrar da frase de Adorno e Horkheimer, para quem há horas em que não há nada mais estúpido do que ser inteligente. A frase se referia à incapacidade de setores da sociedade alemã de encararem claramente os signos de ascensão do nazismo no começo dos anos 1930 e pararem de procurar explicações sutis e inteligentes sobre a impossibilidade de o pior ocorrer. Dificilmente raciocínio dessa natureza não se aplicaria ao Brasil atual.
De fato, nosso país tem ao menos a virtude da clareza. E foi com a clareza a guiar seus olhos redentores que o general Antonio Hamilton Mourão revelou aos brasileiros que as Forças Armadas têm um golpe militar preparado, que há uma conspiração em marcha a fim de destituir o poder civil. Para mostrar que não se tratava de uma bravata que mereceria a mais dura das punições, o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas descartou qualquer medida e ainda foi à televisão tecer loas a ditaduras e lembrar que, sim, as Forças Armadas podem intervir se o "caos" for iminente.
O "caos" em questão não é a instauração de um governo ilegal e brutalizado saído dos porões das casernas. Ao que parece, "caos" seria a situação atual de corrupção generalizada. Só que alguém poderia explicar à população de qual delírio saiu a crença de que as Forças Armadas brasileiras têm alguma moral para prometer redenção moral do país?
Que se saiba, quando seus pares tomaram de assalto o Palácio do Planalto, cresceram à sua sombra grandezas morais do quilate de José Sarney, Paulo Maluf, Antonio Carlos Magalhães: todos pilares da ditadura. Enquanto eles estavam a atirar e censurar descontentes, o Brasil foi assolado por casos de corrupção como Capemi, Coroa Brastel, Brasilinvest, Paulipetro, grupo Delfin, projeto Jari, entre vários outros. Isso mesmo em um ambiente marcado pela censura e pela violência arbitrária.
De toda forma, como esperar moralidade de uma instituição que nunca viu maiores problemas em abrigar torturadores, estupradores, ocultadores de cadáveres, operadores de terrorismo de Estado, entre tantas outras grandes ações morais? As Forças Armadas brasileiras nunca tomaram distância dessas pessoas, expondo à nação um meaculpa franco.
Ao contrário, elas os defenderam, os protegeram, até hoje. Que, ao menos, elas não venham oferecer ao país o espetáculo patético de aparecerem à cena da vida pública como defensoras de um renascimento moral feito, exatamente, pelas mãos de imoralistas. As Forças Armadas nunca foram uma garantia contra o "caos". Elas foram parte fundamental do caos.
É verdade que setores da sociedade civil sonham com mais um golpe como forma de esconder o desgoverno que eles mesmos produziram. Há setores do empresariado nacional que articulam abertamente nesse sentido, sonhando como isto não terem que se confrontar mais com uma população que luta pelos seus interesses. Para tanto, eles apelam ao artigo 142 da Constituição de 1988.
Este artigo fora, desde o início, uma aberração legislativa imposta pelos próprios militares. Ele legalizava golpes de Estado, da mesma forma que o artigo 41 da República de Weimar, que versava sobre o estado de emergência, permitiu a ascensão da estrutura institucional do nazismo. Segundo o artigo, se qualquer poder chamar as Forças Armadas para garantirem a ordem, se digamos o sr. Rodrigo Maia fizer um apelo às Forças Armadas porque há "caos" em demasia, o golpe está legalizado. Ou seja, é verdade, nossa Constituição tinha uma bomba-relógio no seu seio. Bomba pronta a explodi-la, como agora se percebe.
Contra essa marcha da insanidade, há de se lembrar que, se chegamos ao ponto no qual um general na ativa pode expor abertamente que conspira contra o poder civil, então cabe àqueles que entendem não terem nascido para serem subjugados pela tirania, que não estão dispostos a abrir mão do resto de liberdade que ainda têm para se submeter a mais uma das infindáveis juntas latino-americanas, prepararem-se para exercer seu mais profundo direito: o direito de resistência armada contra a tirania.
Que os liberais se lembrem de John Locke e de seu "Segundo Tratado sobre o Governo". Que os protestantes se lembrem de Calvino e de sua "Instituição da Religião Cristã". E que o resto se lembre que a liberdade se defende de forma incondicional.
(*) Professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP, artigo publicado originalmente na Folha de S. Paulo, 22-09-2017.
(**) Instituto Humanitas Unisinos
SIM! ART. 142 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL PARA QUEM HÁ HORAS EM QUE NÃO HÁ NADA MAIS ESTÚPIDO DO QUE SER INTELIGENTE!
ResponderExcluirPermita-me um aparte inteligente senhor Mário Lobato da Costa: reconheço e concordo com o argumento de que as Forças Armadas “nunca viu maiores problemas em abrigar torturadores, estupradores, ocultadores de cadáveres, operadores de terrorismo de Estado, entre tantas outras grandes ações morais (...) nunca tomaram distância dessas pessoas, expondo à nação um meaculpa franco” (SAFATLE, 2017).
Porém, devo adverti-lo que a hermenêutica jurídica e o raciocínio lógico não certificam a interpretação do Art. 142 da Constituição Federal no sentido de atribuir às Forças Armadas o DEVER de defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais, por serem instituições detentoras de moralidade, de seus membros terem visão democrática e conhecimentos estadistas. Como o próprio nome revela, esse DEVER deriva da legalidade e da legitimidade de uso do PODER BÉLICO que detém as Forças Armadas.
O entusiasmado aforismo empregado – por admiração, usado neste título – também lesiona: A inteligência! É uma questão de química orgânica, nada mais. Não somos mais responsáveis por sermos inteligentes do que por sermos estúpidos (Paul Léautaud). Orgânica? Claro, OR-GÂ-NI-CA! E é apenas isto mesmo que se resume a nossa inteligência e o DEVER das instituições previsto no Art. 142 da Constituição.
Creio que nenhum brasileiro esteja defendendo a legalidade e a legitimidade das Forças Armadas para assumirem os Governos Executivos e os Legislativos, pois todos sabem que não cabe às instituições o poder político. Aliás, a moralidade e a ideologia política são tão subjetivas e individuais que as sociedades civilizadas instituíram o DIREITO para regular e delimitar o espaço de liberdade público e o privado.
Assim sendo, quando o DIREITO – o Contrato Social (Constituição) pactuado entre o povo e o governo –, quando o espaço de liberdade público e o privado são ameaçados, seja pela moralidade e ideologia subjetivas e individuais, ou pelo poder político, ou Executivo, ou Legislativo, ou Judiciário, o Art. 142 da Constituição Federal legaliza e legítima a função orgânica das Forças Armadas para intervir porquanto, se não o fizer, estará todo Estado (povo, território e governo) sujeito ao Estado de Natureza (Estado sem Lei).
Portanto, sim! Art. 142 da Constituição Federal para quem há horas em que não há nada mais estúpido do que ser inteligente! É uma função orgânica, nada mais.