FotoREUTERS/JEFF HAYNES
Era uma das últimas vozes rebeldes da América real e blue collar, do tempo em que ser uma voz rebelde da América não implicava ir para o Twitter dizer inanidades, do tempo em que ser real e blue collar não significava apoiar o Klu Klux Klan: Tom Petty, autor de American Girl, criador de riffs eternos, líder dos HeartBreakers, herdeiro de Bob Dylan – de quem era amigo – e rosto maior do rock'n'roll clássico, morreu na noite de segunda para terça-feira, na Califórnia, aos 67 anos de idade, na sequência de uma crise cardíaca.
Não há outra forma de dizer isto: Tom Petty era uma das últimas estrelas vivas daquilo a que se pode chamar o final da adolescência do rock'n'roll, ou seja, a década de 70, quando um género que até então fora visto como mero escapismo adolescente começou a alcançar uma faixa etária menos jovem, e também a ganhar público para lá dos adolescentes e dos estudantes universitários. Quando o rock começou a ganhar corpo, a ter história, a procurar até uma certa seriedade Petty surgiu como um dos seus primeiros grande estudiosos de intérpretes (uma figura inaugurada, lá está, por Bob Dylan).
Petty dizia nunca ter tido grandes dúvidas acerca do seu destino: “É estranho dizer isto”, contava à Rolling Stone, em 2009, "mas sempre senti que este papel me estava destinado. Desde muito pequeno sabia que faria isto”. Ironicamente, o Tom Petty que um dia veio a tornar-se símbolo dos blue collar values crescera vítima de abuso do seu próprio e blue collar pai, que não aceitava que o filho fosse frágil fisicamente, sensível a propenso à arte.
O predestinado Petty teve de esperar até aos 27 anos para alcançar o seu primeiro êxito, quando, com os Heartbreakers a seu lado, editou o single Breakdown, que chegou aos 40 primeiros lugares da tabela de vendas inglesas. Era o momento de que Petty estava à espera desde que em miúdo vira os Beatles no Ed Sullivan Show e pensara para si mesmo: “Eu consigo fazer isto”. Mas foi com Don't do me like that, single do terceiro álbum, lançado em 1979, que Petty entrou para iconografia americana – Damn the Torpedoes (que é o nome do LP) vendeu na ordem dos milhões de cópias, confirmado a capacidade de Petty de combinar melodia e riffs enormes.
Tudo o que é preciso saber sobre o som de Petty e dos Heartbreakers pode encontrar-se nessa magnífica canção: uma grande riffalhada a abrir, a pianada blusey em fundo e depois o hammond cheio de verve, antes de um swingar de quem exsuda rock'n'roll. Canções assim – orelhudas, melódicas, com tudo – enchem estádios e Petty nasceu para as escrever.
Nessa época Petty criou, disco após disco, com os Heartbreakers a seu lado, uma sucessão invejável de grandes canções clássicas, que hoje muito provavelmente já poucos recordam, como a magnífica Square one, The waiting, em que se sente a herança dos Byrds nas harmonias de guitarra, ou Southern accent.
Esse som não se limitou a ter apenas um significado musical: a recusa em incorporar sintetizadores e demais sons plastificados, que se usavam cada vez mais no mainstream, a obsessão em escrever sobre temas que o povo compreendesse tornaram Petty numa espécie de bastião da América real – sem que isto implicasse reaccionarismo. Essa demanda ficou conhecida como “heartland rock”, um sub-género cujas principais características eram a recusa de artifícios, de todo o tipo de pirotecnia, e uma espécie de procura de pureza ou de honestidade, por assim dizer. Por outras palavras: era música que procurava ser terra-a-terra. Músicos como Bruce Springsteen ou, posteriormente, esse grande nome da country que é Steve Earle foram incluídos nesse movimento (que aos portugueses diz pouco).
É possível que o maior êxito da carreira de Tom Petty seja Free fallin' – mas seria injusto para a sua obra que fosse essa a memória (a de uma canção orelhuda, mas menor) que as pessoas guardassem dele. Também não seria muito justo que os melómanos se recordassem em demasia daquela aventura no final da década de 80 que deu pelo nome de Travelling Wilburys, banda que partilhava com Dylan e Roy Orbison e que ainda lançou dois discos. Não era propriamente má música mas também não havia ali nada de memorável – ficava-se até com a impressão de que a auto-complacência reinara nas sessões de escrita.
Como todos os grandes escritores de canções Petty acabou por levantar-se desse trambolhão e a idade adulta não o coibiu de escrever grandes canções – em termos materiais, Full Moon Fever, disco a solo de 1989, foi um sucesso colossal; em termos musicais pode afirmar-se que a década de 1990 de Petty, quando começou a actuar a solo, tem muitas canções que não ficam nada a dever ao melhor dos HeartBreakers. Um bom exemplo disto é uma canção como Swingin',de Echoes, disco de 1999: tema adulto, amargo, com uma harmónica prenha de melancolia, é daquelas canções que se fosse assinada por um Dylan ou um Cohen seria posta nos píncaros pelos críticos. Apesar das suas aventuras a solo, Petty continuou a tocar com os Heartbreakers e o último disco da banda, Hypnotic Eye, data de 2014.
De certa maneira, pode até dizer-se que Petty era um dos últimos americanos, pelo menos se entendermos por americano aquele homem que acredita que com trabalho e amor à família e à sua escassa história conseguirá alcançar uma vida melhor. A sua herança, mais que os royalties de cerca de 80 milhões de discos vendidos é composta por umas dezenas valentes de grandes canções, das que se cantam a plenos pulmões.
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