As diretrizes sobre como organizar a Atenção Básica no Sistema Único de Saúde (SUS), nível de atenção responsável pela produção anual, em todo o País, de cerca de 2 bilhões de procedimentos, foram redefinidas em 21 de setembro de 2017 pela Portaria nº 2.436. Cabe assinalar que a Atenção Básica conta com cerca de 15% dos recursos do Ministério da Saúde. A portaria é um profuso documento que ocupou nove páginas da edição de 22/9/2017 do Diário Oficial da União. Não obstante, não aparece no documento a expressão “plano de cargos” e a palavra “carreira” ocorre uma única vez, citada no parágrafo VII do artigo 7º, que trata das “responsabilidades comuns a todas as esferas de governo”. Estas incluem “desenvolver mecanismos técnicos e estratégias organizacionais de qualificação da força de trabalho para gestão e atenção à saúde, estimular e viabilizar a formação, educação permanente e continuada dos profissionais, garantir direitos trabalhistas e previdenciários, qualificar os vínculos de trabalho e implantar carreiras que associem desenvolvimento do trabalhador com qualificação dos serviços ofertados às pessoas”. Em todo o caso, o termo “carreira” aparecia com o mesmo significado, também uma única vez, no documento similar, vigente até então, aprovado em 2012.
Um dos problemas mais graves enfrentados pelo SUS nesta área é a precarização do trabalho, a terceirização e o descaso com a necessidade de profissionalização dos trabalhadores. A portaria passa longe do enfrentamento desses problemas, agravando-os com a flexibilização das jornadas de trabalho e da composição das equipes de saúde. Cinicamente, a ampliação do descaso com os profissionais de saúde foi anunciada pelo governo e seus aliados, inclusive na oposição, como um grande avanço, pois as novas regras visariam a “não prejudicar a população que mais precisa” e resultariam “da experiência acumulada por um conjunto de atores envolvidos historicamente com o desenvolvimento e a consolidação” do SUS “como movimentos sociais, população, trabalhadores e gestores das três esferas de governo”. Advirto que não há, de minha parte, erro de citação: o texto da portaria afirma isto, que ela resulta da “experiência acumulada… pelos trabalhadores”.
Desde a histórica 8ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), realizada em 1986, os trabalhadores do sistema público de saúde lutam por uma carreira única nacional. Consta do Relatório Final da 8ª CNS a necessidade do “estabelecimento urgente e imediato de plano de cargos e salários”. A 9ª CNS, realizada em 1992, considerou “indispensável” criar “quadros de profissionais de saúde em cada esfera de governo”, com a “implantação do plano de carreira do SUS” vinculando a ela “todos os trabalhadores do SUS, designando-se, portanto, como carreira multiprofissional ou carreira única de saúde”, garantindo-se que nos processos de gestão do SUS “as funções gerenciais e técnicas sejam ocupadas preferencialmente por funcionários de carreira, com qualificação específica”. A 14ª CNS, de 2011, chegou a fixar uma data para a implantação de um Plano de Cargos, Carreiras e Salários (PCCS), com “piso salarial nacional, isonomia salarial para profissionais e trabalhadores com o mesmo nível de formação” implementando-o como uma “carreira de Estado, garantindo incentivos de exclusividade, escolaridade e interiorização, respeitando as leis de carga horária de todas as profissões, garantindo sua cidadania e estabelecendo mecanismos de combate ao assédio moral”. Aquela Conferência Nacional de Saúde propôs que o PCCS “terá a participação das três esferas de governo em seu financiamento, com garantia de que o PCCS da saúde seja discutido e implantado, até fevereiro de 2012, pela Mesa de Negociação Permanente do SUS, pelo Congresso Nacional e sancionado pela Presidência da República”.
Três décadas depois da 8ª CNS, nada de PCCS e nada de carreira do SUS.
Pela primeira vez em sua história de três décadas, o SUS tem em seu comando um Ministro da Saúde que tem se notabilizado por ser um notório desafeto do sistema. Não bastasse isto, o SUS sofre agressões diárias e padece de crônico subfinanciamento, conforme é de amplo conhecimento dos mais familiarizados com o assunto. “Agoniza”, diagnosticam alguns. “Já morreu”, dizem outros, acrescentando que “só falta enterrar”. De modo geral, os países destinam aos seus sistemas de saúde algo em torno de 8,5% dos seus respectivos PIB (Produto Interno Bruto). Em média, cerca de 6% disso correspondem ao gasto público. No Brasil, o SUS vem contando com aproximadamente 3% do PIB, constituindo-se em exceção dentre os países com sistemas universais de saúde. Em torno de 1,6% do PIB investido em saúde corresponde, no Brasil, aos recursos que o governo federal aloca ao SUS. Isto equivale, em 2017, a aproximadamente R$ 117 bilhões. A cada ano o SUS vem perdendo recursos, seja pela não reposição de perdas derivadas de inflação, seja por cortes e contingenciamentos variados. A aprovação da denominada “PEC da Morte” (Emenda Constitucional 95/2016), que congela por 20 anos o investimento público, agravará ainda mais o quadro crítico de subfinanciamento crônico do sistema. Mas o SUS segue em frente, muito possivelmente por ter se transformado, ademais dos relevantes serviços que presta ao povo brasileiro, em espaço onde flui impunemente o roubo de dinheiro público, conforme farta disseminação de notícias sobre desvio de verbas do SUS, na imprensa, na internet e outros veículos de informação. Esses interesses escusos não deixam o SUS acabar. É um contexto de subfinanciamento, mas, a despeito disso, bilhões de reais circulam anualmente pelo sistema, nos âmbitos federal, estadual e municipal, atraindo a cobiça de inescrupulosos. Na origem de crimes utilizando dinheiro do SUS, está a frágil base administrativa de controle de transferências e aplicações de recursos públicos. Órgãos de acompanhamento e controle padecem da mesma fragilidade que marca o SUS, em todos os níveis em que está organizado.
Elo frágil na cadeia de aplicação dos recursos do SUS, os trabalhadores pagam a conta. Não têm carreira, predominam baixos salários e condições de trabalho inadequadas, viceja a precarização. Não há, propriamente, trabalho decente em muitos serviços próprios e contratados pelo SUS.
Em trabalho acadêmico publicado em 2011, um grupo de pesquisadores da Fiocruz, liderados pela professora Maria Helena Machado, delineou um quadro da força de trabalho em saúde no Brasil à época, com base em dados obtidos junto ao IBGE, que pode ser sintetizado como segue: mais de 10% da massa salarial do setor formal corresponde ao setor de saúde, com 3,9 milhões de postos de trabalho, sendo 690 mil sem carteira assinada e 611 mil profissionais autônomos, atuando predominantemente (66,5%) em municípios com mais de 100 mil habitantes. O setor público emprega um pouco mais do que o setor privado, desde meados dos anos 1980. Estima-se que cerca de 1,5 milhão desses trabalhadores ocupem postos de trabalho gerados pelo SUS. Em 2005 eram 105.686 (7,3%) vinculados ao governo federal, 345.926 (23,9%) aos governos estaduais e 997.137 (68,8%) a governos municipais. Entre 1992 e 2005 a variação no comportamento dos empregos no setor público foi de 225,3% nos municípios, de 9,7% nos estados, registrando-se variação negativa (-7,3%) no âmbito federal. Observa-se, portanto, que o expressivo aumento de empregos no SUS ocorreu pelo crescimento do emprego nos municípios. Meia década depois, o quadro não se alterou substantivamente, em termos macroeconômicos.
A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) impõe importantes restrições aos gestores municipais, uma vez que não podem aplicar com “pessoal” mais do que 54% do orçamento. Mas sistemas e serviços de saúde são intensivamente dependentes de recursos humanos, que oneram, de modo geral, cerca de três quartos dos orçamentos. Desse modo, a LRF “empurra” esses gestores para a terceirização dos serviços de saúde que compõem o SUS no nível municipal.
Nesse contexto, as Organizações Sociais de Saúde (OSS) aparecem como uma espécie de “puxadinho” administrativo, uma solução precária para um grave problema estrutural que precisa ser enfrentado por gestores e trabalhadores do SUS. Ademais, em número crescente de situações, algumas OSS se transformam em meras “atravessadoras” de recursos públicos entre secretarias municipais de saúde (SMS) e os trabalhadores do SUS. São empresas que nada têm de social e que operam nesse “mercado de direitos sociais” com o padrão que caracteriza as piores empresas terceirizadas. Estão em busca de lucro fácil e dispostas a superexplorar trabalhadores. Após sair do Fundo Nacional de Saúde, do Ministério da Saúde, o “dinheiro do SUS” passeia, desnecessariamente, por muitos cofres até chegar às contas-salário dos trabalhadores da saúde. Por essa razão, também em número crescente, muitas OSS se veem envolvidas em operações policiais, registrando-se casos de banditismo puro e simples.
E os trabalhadores do SUS? O que querem para si? O que propõem para a gestão do SUS, incluindo a gestão do trabalho no SUS? Estão satisfeitos com a portaria da PNAB que reconhece a “experiência acumulada” pelos trabalhadores que estaria contemplada nas novas regras? Concordam que não é mais preciso um PCCS de base federal tal como vêm propondo todas as conferências nacionais de saúde, desde 1986?
Fiz essas perguntas aos servidores públicos municipais de saúde de São Paulo, em seminário(**) para o qual eles se dispuseram a me ouvir, em 5 de outubro de 2017. Argumentei que, além de dar continuidade (pois isto segue sendo muito necessário) às campanhas “Contra a privatização do SUS”, “Saúde não é mercadoria”, “Não à terceirização e às OSS”, dentre outras, é preciso encontrar novos caminhos, propositivos e, inaugurando uma agenda positiva, dizer “sim” para alternativas que fortaleçam o SUS. Uma dessas alternativas é a urgente criação de uma Carreira Interfederativa, Única, Nacional do SUS, com forte base federal e participação de estados e municípios. Uma carreira que ajude a banir do SUS as OSS atravessadoras e que, além disso, contribua para que as SMS possam cumprir a LRF sem comprometer seus orçamentos.
Nos dias atuais – eu disse aos servidores municipais paulistanos –, a estratégia da municipalização da saúde, que defendemos a partir de 1988, começa a dar sinais de esgotamento, sendo urgente criar e fortalecer instâncias regionais de gestão do SUS, para que atuem também como base operacional da Carreira Interfederativa, Única, Nacional do SUS. Aferrando-se ao que consideram “dinheiro do SUS para o meu município”, como se estes fossem entes soberanos na federação brasileira, muitos prefeitos vêm desempenhando um papel conservador – quando não abertamente reacionário – frente às inovações de gestão que o SUS requer para atender às justas demandas da população por mais e melhores serviços integrais de saúde. Não menos importante é considerar que organizada e administrada tendo por base operacional as regiões de saúde, a carreira interfederativa, única, nacional do SUS contribui para corrigir distorções e insuficiências da municipalização, uma vez que impulsiona a constituição de sistemas regionais que possibilitam articular diferentes serviços de saúde com vistas à constituição e consolidação das redes regionais de atenção à saúde. Por isso, uma carreira única do SUS não é um problema a mais para gestores que orientam seu trabalho pelo interesse público, mas, ao contrário, é parte da solução dos problemas relacionados com o desvio de dinheiro público e com o desafio de constituir redes regionais de atenção à saúde, com base no princípio da integralidade do cuidado.
De acordo com a Agência Brasil, em 27/9/17 o Ministério da Saúde anunciou que em parceria com o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS) e o Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (CONASS), deu início a um projeto denominado “Código do SUS”, com a finalidade de consolidar as normas organizativas do SUS para “melhorar a gestão das políticas públicas e dar mais transparência às regras, facilitando também a compreensão do cidadão e dos órgãos de controle”. O projeto está sendo executado pelo Programa de Direito Sanitário da Fiocruz e pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). São, atualmente, mais de 16 mil portarias que regulamentam o funcionamento do SUS, sendo que apenas 700 trazem normativas válidas. Espera-se consolidar tudo até 2020 em apenas seis portarias divididas segundo os seguintes eixos temáticos: 1) regras gerais da organização e funcionamento do SUS; 2) conteúdos sobre as 48 políticas públicas de saúde; 3) Rede de Atenção à Saúde; 4) sistemas do SUS; 5) ações e serviços de saúde; e, 6) financiamento.
Mais uma vez, nada de carreira do SUS entre os eixos temáticos, nada de planos de cargos e salários, nada de vinculação entre cargos de comando e assessoria técnica vinculados à carreira do SUS e à profissionalização do trabalho no setor público. Nesta perspectiva, que se recusa a pensar a gestão do SUS como a do exercício de um direito social, os trabalhadores do SUS são vistos e tratados apenas como um “recurso” a mais a ser gerido como outra mercadoria qualquer no processo de produção dos “serviços de saúde”, “pagos pelo SUS”. O SUS fica, assim, reduzido na lógica gerencialista a pouco mais do que uma agência de financiamento.
Como o objetivo central do projeto “Código do SUS” é de, ao final (2020) possibilitar que o Ministério da Saúde publique o Código do SUS como um “Regulamento do Sistema Único de Saúde” com vistas a “orientar a organização do SUS de modo sistematizado contribuindo para a garantia do direito fundamental à saúde”, este período histórico é de fundamental importância estratégica para a ação dos que creem factível e viável uma carreira interfederativa, única e nacional do SUS, inserindo-a no “Código do SUS”.
Por essa razão, concluí minha participação no referido seminário paulistano propondo a intensificação, em todo o País, das lutas pela carreira do SUS delineando-a como um PCCS de abrangência nacional, financiamento tripartite, comando interfederativo, base gerencial regional, administrada por uma secretaria do Ministério da Saúde e com implantação gradual, por adesão dos entes. Tais características justificam-se, pois se o SUS é um sistema único as carreiras não podem ser exclusivamente estaduais ou municipais; os recursos para viabilizar economicamente a carreira devem ser aportados a ela pelos governos da união, dos estados e dos municípios; a construção e permanente aprimoramento do PCCS requer comando composto por representantes de todos os entes federativos e dos próprios trabalhadores em cada base regional, atualmente definidas em número de 437; e, por fim, que o Ministério da Saúde redimensione sua estrutura para que a pasta possa, efetivamente, assegurar a plena implantação da carreira do SUS, reconhecendo que sem os trabalhadores da saúde não há SUS, mas, mais do que isto, reafirmando o valor do trabalho no serviço público e reiterando que os profissionais de saúde são o bem mais precioso do SUS. Em síntese: invertendo tudo o que predomina hoje, em que os trabalhadores da saúde, convertidos em uma espécie de “anexo problemático” sequer são mencionados em documentos de planejamento ou relacionados com o modelo de atenção. Sem colocar os profissionais de saúde no centro do SUS, por meio de uma carreira interfederativa, única, nacional, nenhum modelo de atenção fará do SUS o “projeto civilizatório” sonhado para ele por Sérgio Arouca, um dos seus criadores.
* Paulo Capel Narvai é cirurgião-dentista sanitarista; professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP) e integrante do Grupo Temático Saúde Bucal Coletiva (GTSB/Abrasco). Autor de ‘Odontologia e Saúde Bucal Coletiva’ (Ed.Santos) e de ‘Saúde Bucal no Brasil: Muito Além do Céu da Boca’ (Ed.Fiocruz), dentre outras obras científicas.
** Trabalho apresentado no 9º Seminário dos Trabalhadores da Saúde do Sindsep, Mesa Temática 1 – O desmonte da Seguridade Social no Brasil e o Financiamento do SUS, realizado em 5/10/2017 pelo Sindicato dos Trabalhadores na Administração Pública e Autarquias no Município de São Paulo (SINDSEP).
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