Tramita em Comissão Especial da Câmara dos Deputados a discussão sobre a reforma da Lei 9.656/98, que regulamenta os planos e seguros privados de assistência à saúde.
As discussões abrangem 140 projetos de lei apresentados ao longo dos anos e tem por objetivo reunir uma proposta de reforma unificado.
O relator, deputado Rogério Marinho (PSDB-RN) apresentou em 18.10.2017 seu parecer, que, posteriormente, será ainda levado à votação.
Toda a discussão vem sendo acompanhada de muita polêmica, dado o caráter de urgência imposta à tramitação, à limitação de entidades de defesa do consumidor no acompanhamento das deliberações e, principalmente pelo receio de que o projeto proposto prejudique os usuários.
Com a liberação do parecer, é possível, enfim, tecer considerações sobre as mudanças propostas, os avanços e, principalmente, os retrocessos.
Foco na prevenção
O parecer com a proposta de alteração menciona a "(...) incorporação de ações de promoção da saúde e de prevenção de riscos e de doenças" (...) "compreendendo procedimentos preventivos".
O dispositivo traz avanços como o foco em procedimentos de caráter preventivo, abrindo caminho para a cobertura de vacinas, exames genéticos (visando identificar tendência ao desenvolvimento de certas doenças) entre outros.
Humanização
O projeto se preocupa com aspectos positivos no sentido de garantir uma maior humanização do atendimento e respeito a princípios bioéticos mundialmente reconhecidos.
Neste sentido, o texto menciona expressamente a garantir ao "respeito à autonomia e à integridade física e moral das pessoas assistidas", bem como "à informação sobre sua saúde".
A proposta prevê, ainda, o direito de cobertura de despesas de acompanhante de idoso, crianças e adolescentes ou pessoa com deficiência.
Portabilidade flexível e garantia de não interrupção de coberturas
Há medidas benéficas aos usuários, como permitir maior flexibilidade na mudança entre planos individuais, familiares e coletivos, de modo que os beneficiários poderão migrar de plano com o aproveitamento de carências já cumpridas e a transferência poderá ser realizada a qualquer tempo, ao contrário do que ocorre atualmente.
O texto propõe ainda que no caso de cancelamento do plano coletivo por iniciativa da operadora, esta deverá, obrigatoriamente, oferecer plano na modalidade individual ou familiar aos usuários que desejarem. Atualmente, é comum que no caso de cancelamento de apólices de planos coletivos, os usuários tenham que ir à Justiça exigir o direito de continuidade de coberturas.
Uma alteração é particularmente benéfica aos usuários aposentados que usufruem de planos empresariais. Atualmente, o ex-empregado aposentado poderia se manter no plano de saúde após o seu desligamento, assumindo o pagamento das mensalidades, desde que houvesse contribuído com o pagamento do plano por no mínimo 10 anos. A nova proposta de lei reduz este prazo para 5 anos.
Ou seja, empregado aposentado que contribuiu pelo período de ao menos 5 anos, poderá, após o seu desligamento, se manter no plano empresarial de forma vitalícia.
Obrigatoriedade de comercialização de planos individuais e familiares
O parecer propõe que as operadoras "(...) oferecerão, obrigatoriamente, planos de contratação individual ou familiar, a seus atuais e futuros consumidores".
Durante muitos anos, as operadoras retiraram do mercado os planos individuais e familiares pelo fato de este tipo de contrato ser o que oferece maior proteção legal aos consumidores, como a limitação de reajustes anuais (estabelecidos pela ANS) e a impossibilidade de cancelamento unilateral por iniciativa da operadora.
Com a previsão da obrigatoriedade de comercialização deste produto, os usuários terão uma opção mais segura.
Reajustes por idade escalonados
Uma das principais causas de processos judiciais contra planos de saúde relaciona-se aos reajustes por idade.
Atualmente, a última faixa etária prevista nos contratos é a dos 59 anos. O problema, é que ao atingirem esta idade, os usuários sofrem reajustes que alcançam percentuais de 80%, 90% e até 100%.
A reforma da legislação propõe alteração neste tocante prevendo que: "Para aplicação do reajuste da última faixa etária a operadora, no momento em que o beneficiário completar 59 anos, calculará o valor nominal do reajuste dividindo-o em cinco parcelas, de no máximo 20% cada uma, que serão aplicadas a cada cinco anos".
Em outras palavras, se ao atingir 59 anos de idade o usuário teria um reajuste previsto em contrato de, por exemplo, 100% , com a nova sistemática seriam aplicados reajustes anuais de 20% ao longo dos 5 anos seguintes. Ou seja, o usuário teria um aumento de 20% aos 59 anos, 20% aos 64 anos, 20% aos 69 anos, 20% aos 74 anos e 20% aos 79 anos.
Na prática, a proposta cria novas faixas etárias (o que seria vedado pelo Estatuto do Idoso), porém diluí o impacto do reajuste ao longo do tempo. Este, certamente, será um ponto do projeto ainda passível de muita discussão.
Estímulo ao subsídio de informações técnicas aos juízes
O texto do projeto propõe que "(...) em demandas nas quais se pleiteie a realização de procedimento em saúde ou o fornecimento de produto para saúde ou medicamento, o juiz deverá, antes de conceder a tutela de urgência, requisitar parecer de profissional da saúde, integrante de núcleo de apoio técnico de que disponha o tribunal ou de entidade conveniada".
Este dispositivo da proposta não é uma novidade. Na verdade o próprio Conselho Nacional de Justiça tem estimulado a criação dos Núcleos de Apoio Técnico junto aos Tribunais a fim de subsidiar os juízes com dados técnicos para que possam embasar suas decisões.
Há, no entanto, algumas críticas a estas iniciativas. Em primeiro lugar, pelo possível comprometimento da imparcialidade, vez que muitos destes núcleos são patrocinados por operadoras de saúde, parte diretamente interessada na ingerência dos procedimentos.
Além disso, a vinculação da decisão judicial a parecer técnico de terceiros fere a autonomia profissional do médico assistente do paciente, que tem o direito de indicar o tratamento mais adequado, não devendo haver intervenção ou restrições por parte das operadoras que, obviamente, tem interesse na redução de custos e limitação de coberturas.
De toda forma, é importante destacar, por outro lado, que o projeto da reforma ressalva que, em casos de urgência, o magistrado pode dispensar o parecer técnico prévio.
Restrição da aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor
Este é, sem dúvidas, o ponto mais polêmico do projeto apresentado e o mais perigoso para os usuários.
A atual Lei 9.656/98, que regulamenta os planos de saúde, garante expressamente em seu artigo 35-G, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos de planos de saúde.
O projeto apresentado, no entanto, inclui uma ressalva.
Embora reconheça a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor aos planos de saúde, dispõe que essa aplicabilidade "(...) não pode resultar em desconsideração da segmentação contratada, do Rol de Procedimentos e Eventos cobertos pelo plano de assistência à saúde, nem determinar a realização de procedimentos que não sejam aprovados pelos conselhos profissionais na área da saúde ou o fornecimento de medicamentos ou produtos para a saúde que não sejam certificados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária".
Na prática, este dispositivo atende a uma antiga reivindicação das operadoras e causa enorme prejuízo aos pacientes.
Isto porque, uma das maiores causas de ações judiciais movidas por pacientes é justamente a cobertura de exames, tratamentos e procedimentos ainda não incluídos no rol de procedimentos da ANS.
Isto ocorre porque o referido rol é atualizado periodicamente (normalmente a cada 2 anos) e a incorporação dos novos tratamentos e tecnologias pela ANS não acompanha a evolução das ciências médicas.
Vale dizer que o rol da ANS encontra-se sempre defasado.
O Judiciário, por outro lado, entende de forma absolutamente pacífica que o rol de procedimentos da ANS tem caráter meramente exemplificativo. Ou seja, representa apenas as coberturas mínimas obrigatórias, não significando que outros procedimentos, ainda que não previstos expressamente no rol, não devam ser cobertos.
Neste sentido, pode-se mencionar, por exemplo, o teor da Súmula 102 do Tribunal de Justiça de São Paulo, que dispõe justamente que: "Havendo expressa indicação médica, é abusiva a negativa de cobertura de custeio de tratamento sob o argumento da sua natureza experimental ou por não estar previsto no rol de procedimentos da ANS".
A iniciativa do projeto de reforma é, justamente, limitar a responsabilidade das operadoras exclusivamente aos procedimentos previstos no rol editado pela ANS, o que sem dúvidas representaria um prejuízo imensurável aos pacientes que sofreriam restrições de acesso a tratamentos mais modernos e eficazes, porventura não incorporados na lista oficial da ANS.
Outra questão igualmente polêmica é a restrição expressa ao fornecimento de medicamentos ainda não registrados pela Anvisa.
Muitos pacientes, principalmente com doenças graves e por vezes raras, necessitam de medicamentos não disponíveis no Brasil, porém já amplamente utilizados pela comunidade médica internacional e registrados junto aos órgãos de vigilância sanitária da Europa e Estados Unidos, não havendo dúvidas quanto à sua eficácia e segurança.
As operadoras, por sua vez, alegam que não seriam obrigadas a fornecer medicamentos sem registro.
Caso prevaleça a proposta da reforma apresentada, os pacientes encontrarão mais uma barreira para garantir acesso a tais medicamentos, sendo prejudicados pela inércia dos próprios órgãos regulamentadores do país. Para se ilustrar, basta mencionar que a média do tempo para registro de medicamentos pela Anvisa é de 4 anos, havendo casos em que este período é muito maior.
Absoluto retrocesso
O Parecer do projeto de reforma da Lei dos Planos de Saúde apresentada pelo Deputado Rogério Marinho (PSDB) traz alguns avanços que, pontualmente, beneficiam os usuários. No entanto, naquilo que realmente interessa, é um absoluto retrocesso e atende exclusivamente aos anseios das operadoras.
Os pontos principais, como reajustes de mensalidades para idosos (ainda que de forma escalonada) e, principalmente, as restrições à aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor no tocante à cobertura de exames, procedimentos, novas tecnologias não previstas no rol da ANS, bem como ao acesso a medicamentos são lamentáveis, de legalidade (e constitucionalidade) questionáveis e, sem dúvidas, ensejarão um potencial aumento da judicialização, pois não restará aos pacientes alternativa senão recorrerem à Justiça para resguardar seus direitos.
*Luciano Correia Bueno Brandão é advogado titular do Bueno Brandão Advocacia, especializado em Direito à Saúde.
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