Proposta de criação de um novo sistema de saúde acirra briga na saúde
O cenário eleitoral continua bem indefinido, muita água deve rolar nos próximos quatro meses, mas certamente a saúde continuará sendo um tema-chave das campanhas políticas. Em outubro, o país também vai comemorar 30 anos da promulgação da Constituição Federal e da criação do SUS (Sistema Único de Saúde).
Estou muito curiosa para saber quais propostas devem surgir em relação ao futuro do SUS, especialmente neste cenário de cortes de gastos públicos, e se algum presidenciável irá encampar a ideia da iniciativa privada de criação de um novo sistema de saúde.
Recepção do hospital público Cândido Fontoura, na zona leste de São Paulo - Rivaldo Gomes/Folhapress
O assunto é um barril de pólvora. Já vem sendo articulado há anos e veio à tona em abril último, quando a Febraplan (Federação Brasileira de Planos de Saúde) realizou um evento em Brasília para propor a substituição do SUS pelo "novo sistema de saúde".
Segundo projeto apresentado, até 2038, apenas 50% da população teria acesso ao SUS. A outra parcela seria obrigada a contratar um plano privado ou pagar exames e consultas particulares caso precise de atendimento médico.
A proposta remete ao cenário de 30 anos atrás, pré Constituição Federal, em que a saúde não era um direito garantido a todos. A assistência médica era privilégio de quem podia pagar por ela e dos trabalhadores com carteira assinada e seus dependentes. O restante da população era tratado como "indigente". Às vezes, conseguia alguma assistência por meio das instituições de caridade.
Muitos não levaram a sério o evento da Febraplan porque ela não tem grande representatividade no mercado de planos de saúde. Alguns, porém, acham que o ato foi uma espécie de "boi de piranha" da iniciativa privada para sentir a reação da sociedade e planejar os próximos passos.
Na semana passada, a polêmica foi reacendida com a publicação na Folha do artigo de Claudio Lottenberg, presidente do UnitedHealth Group Brasil e do Instituto Coalização Saúde, com réplica de Mario Scheffer, professor da USP e vice-presidente da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva).
Ambos os artigos produziram intensas manifestações. De um lado, há os que viram na fala de Lottenberg mais uma prova de que o setor suplementar se articula para privatizar o SUS. Do outro, os que acusam Scheffer de expor uma ideologia retrógrada que não deixa o país avançar em soluções para saúde.
Os dois textos trazem reflexões interessantes. Lottenberg fala, por exemplo, dos benefícios da digitalização e da telemedicina, que proporciona eficiência, ganhos de produtividade e economia, e de como o país está atrasado nesse campo.
O que despertou a ira da saúde coletiva, porém, foi o trecho em que ele diz que o "Estado tem a responsabilidade de criar os elementos facilitadores para atrair ainda mais a iniciativa privada disposta a enfrentar o desafio de desenvolver e construir um novo sistema de saúde para o Brasil".
Scheffer rebateu o artigo dizendo que "o que executivos e entidades de planos de saúde, hospitais particulares, medicina diagnóstica, organizações sociais, indústria farmacêutica e de equipamentos querem é mais recursos públicos para seus negócios privados."
Discorreu sobre a histórica aproximação de governos com o segmento privado que pouco contribuiu para viabilizar o SUS constitucional. De Sarney a Temer, todos sem exceção contribuíram para que recursos públicos fossem desviados do SUS para o setor privado de saúde.
A oposição entre a militância do SUS e o setor privado da saúde é histórica. Os próprios artigos 196 e 199 da Constituição ("saúde é um direito de todos e dever do Estado" e "a saúde é livre à iniciativa privada, respectivamente) são frutos da mobilização e do lobby do Movimento da Reforma Sanitária e o setor privado (planos de saúde, medicina de grupo e cooperativas médicas), respectivamente.
Em artigo publicado na "Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade", os médicos Gustavo Gusso, Daniel Knupp, Thiago Trindade, Nulvio Lermen Junior e Paulo Poli Neto trazem um bom debate sobre o tema e propõem as "bases para um novo sanitarismo".
Lembram que o sanitarismo brasileiro apesar de ser "irrealisticamente estatizante" e "desconectado dos princípios que norteiam os principais sistemas de saúde do mundo, como a integração do sistema com financiamento público com o setor privado", evitou que o SUS brasileiro fosse americanizado ou mercantilizado por completo.
Mas questionam o conceito de "saúde como um direito" dado que a própria definição de saúde é motivo de intermináveis debates. Defendem que o que deve estar garantido na Constituição é que "serviços de saúde custo efetivos são um direito da população". Aliás, é assim que funciona em países com sistemas universais de saúde, como Inglaterra, Canadá, Portugal e Costa Rica. Nenhum promete entregar tudo para todos.
Tendo a concordar com a conclusão dos autores: "Não se pode viver de crenças e ideologias que ficaram no passado e que paradoxalmente alimentam o perverso e o oposto. Atualmente, a população chegou a uma situação limite no Brasil em que o principal incentivador do serviço público é o privado e do serviço privado é o público. A solução não é financiar os dois".
*Cláudia Collucci - Repórter especializada na área da saúde, é autora de 'Quero ser mãe' e 'Por que a gravidez não vem?'
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