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quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Paulo Guedes investe contra pessoas com deficiência

Proposta apresentada por ministro atropela convenção da ONU que trata de inclusão. Propõe diminuir cotas, retira benefícios de incapacitados, sugere cortes de auxílio-inclusão – e amplia precariedade histórica no mercado de trabalho


Por Flávia Albaine, no Justificando (via Outras Mídias)

No final do mês de novembro foi apresentado, pelo atual ministro da economia, Paulo Guedes, o Projeto de Lei 6159/2019¹ aos membros do Congresso Nacional para apreciação sob o regime de urgência. Ao que nos parece, urgência para legalizar de vez o desrespeito para com as pessoas com deficiência.

De acordo com o artigo 64 da Constituição Federal, o presidente da República pode solicitar tramitação de urgência para os projetos de sua autoria. Nesses casos, a Câmara possui 45 dias para votação e o Senado mais 45 dias. Se o projeto não for apreciado dentro de tal período, poderá haver o travamento da pauta da Casa (Câmara ou Senado) em que ele estiver tramitando, impedindo que outras propostas legislativas sejam votadas. Na data de 03.12.2019 o presidente da Câmara assumiu o compromisso de que o referido projeto de lei não irá tramitar enquanto durar o seu mandato, entretanto, o pedido de urgência ainda não foi retirado formalmente pelo presidente da República.

Tal projeto, eivado de inúmeras inconstitucionalidades, ilegalidades e imoralidades, tem por finalidade alterar algumas legislações que versam sobre as pessoas com deficiência, objetivando, assim, a supressão e a diminuição de alguns direitos que foram duramente conquistados por esse grupo de pessoas. Cremos, inclusive, que o nome mais apropriado para tal documento seria “show de horrores”

Dentre as inúmeras atrocidades trazidas, iremos enumerar algumas delas (sem prejuízo de outras que não serão abordadas nesse artigo) com a indignação não apenas de uma Defensora Pública que luta por mais inclusão da pessoa com deficiência, mas, principalmente, com a indignação de uma pessoa humana estarrecida com o grau de crueldade a que se chega para com o trato de grupos vulneráveis – e o pior: a legalização dessa perversidade à margem da Convenção da ONU sobre os direitos das pessoas com deficiência (incorporada pelo Brasil com status constitucional), da Lei Brasileira de Inclusão, da Constituição Federal e de outros diplomas nacionais e internacionais que versam sobre direitos humanos.

Inicialmente, o documento foi elaborado sem qualquer interação com as organizações representativas das pessoas com deficiência, afrontando a regra “Nada sobre nós, sem nós”, prevista nos artigos 3º e 4 º da Convenção da ONU acima citada. Ou seja, impõem-se alterações significativamente negativas na vida das pessoas com deficiência, sem que as suas instituições representativas tenham sido chamadas para diálogo e participação. 

O projeto de lei também traz mudanças no instituto do auxílio-inclusão previsto no artigo 94 da Lei Brasileira de Inclusão. Tal instituto é voltado para pessoas com deficiência moderada ou grave, incentivando-as a se inserir no mercado de trabalho para exercer atividade remunerada de forma regular, uma vez que as pessoas com deficiência geralmente têm gastos bem maiores do que as outras pessoas para a inserção no trabalho, o que se deve aos obstáculos encontrados. O valor do auxílio é pago juntamente com o salário, e não se confunde com o benefício de prestação continuada. O projeto de lei 6159 / 2019 impõe várias condições cumulativas para que a pessoa com deficiência venha a conseguir tal auxílio, desfigurando, assim, os objetivos que levaram à criação de tal instituto, já que na prática poucas pessoas irão conseguir receber o mesmo. Ademais, estabelece que o beneficiário solicite a suspensão do benefício de prestação continuada antes mesmo de saber se terá direito ou não ao auxílio-inclusão. E mais: os novos critérios de manutenção e revisão do auxílio-inclusão serão feitos por ato do poder executivo federal e não mais por lei. Portanto, o que vemos é a desvalorização total ao trabalho da pessoa com deficiência. 

Mais uma atrocidade trazida pelo projeto ocorre em relação ao segurado, que está em gozo de benefício por incapacidade temporária para o trabalho e insuscetível de recuperação para a sua atividade habitual: ele deverá estar habilitado para outra atividade que garanta a sua subsistência, do contrário, ele deverá se submeter a processo de reabilitação profissional para o exercício de outra atividade. Não importa que essa outra atividade não seja a sua e também não importa que a pessoa venha a ganhar salários bem inferiores da função anteriormente desempenhada. E ainda: os segurados não terão direito de se manifestar contra a reabilitação profissional, sob pena de cessação do auxílio incapacidade. Imaginemos, por exemplo, um engenheiro que por motivos de saúde não possa mais exercer a sua atividade habitual. Ele poderá ser obrigado a trabalhar como auxiliar geral, mesmo com salários mais baixos, para que não seja despedido e nem fique fora do regime de previdência. Percebe-se, portanto, total desrespeito com uma pessoa já fragilizada, tanto por motivos de saúde, como emocionalmente por não poder mais exercer a sua atividade habitual.

Esvaziamento da Lei de Cotas: 


Mudanças significativas – e não menos horrendas – também sobre as cotas que as empresas precisam observar para a contratação de pessoas reabilitadas ou pessoas com deficiência (os percentuais dessas cotas estão previstos no artigo 93 da Lei 8213/91), havendo um completo esvaziamento de tal instituto. A cota de aprendiz (aprendiz é o jovem contratado com idade entre 14 e 24 anos para ser capacitado na instituição formadora e na empresa, combinando teoria e prática) passa a ser computada também para a cota de pessoa com deficiência, diminuindo mais uma vaga no mercado. Ademais, ficam excluídas das cotas as seguintes situações: atividades cuja jornada não exceda a 26 horas semanais (que são exatamente as jornadas ideais para as pessoas com deficiência), atividades ou operações perigosas, e atividades que restrinjam ou impossibilitem o cumprimento da obrigação (expressão completamente vaga e que dá ensejo ao empregador incluir a atividade que quiser para não observar o sistema de cotas). E mais: as empresas de prestação de serviços terceirizados e temporários que prestam serviços aos órgãos públicos estão desobrigadas de cumprir as cotas.

Ainda dentro das tenebrosas alterações feitas no sistema de cotas de contratação das empresas, o projeto prevê que a empresa troque a contratação de pessoas com deficiência pelo pagamento de uma multa equivalente a dois salários mínimos por cargo não preenchido e que será destinada para um fundo. Ou seja, o direito fundamental ao trabalho de uma pessoa em situação de vulnerabilidade pode ser suprimido pelo pagamento de uma multa! E os absurdos continuam: a contratação de uma pessoa com deficiência grave conta como duas contratações para fins do preenchimento do número de cotas da empresa, podendo a empresa cumprir a sua cota em empresa diversa. 

Todos esses aspectos trazidos pelo projeto nos remetem ao modelo da prescindência no tratamento da pessoa com deficiência – que vigorou durante a Idade Média e teve alguns resquícios de aplicação durante o regime nazista – onde é vista como um fardo inútil a ser suportado pela sociedade. De forma similar àquela época, o projeto de lei 6159 de 2019 está colocando essas pessoas à margem da sociedade, excluindo-as do exercício de direitos fundamentais (como o direito ao trabalho) e desestimulando os atores sociais a realizarem a respectiva inclusão, o que, inclusive, fere frontalmente o modelo social de deficiência adotado pelo Brasil (segundo o qual a sociedade é que precisa se adaptar para incluir esse grupo de pessoas da maneira como elas merecem, e não essas pessoas deixarem de exercer os seus direitos e deveres por falta de estrutura social). Todos esses aspectos trazidos pelo projeto nos remetem ao modelo da prescindência no tratamento da pessoa com deficiência – que vigorou durante a Idade Média e teve alguns resquícios de aplicação durante o regime nazista – onde é vista como um fardo inútil a ser suportado pela sociedade. De forma similar àquela época, o projeto de lei 6159 de 2019 está colocando essas pessoas à margem da sociedade, excluindo-as do exercício de direitos fundamentais (como o direito ao trabalho) e desestimulando os atores sociais a realizarem a respectiva inclusão, o que, inclusive, fere frontalmente o modelo social de deficiência adotado pelo Brasil (segundo o qual a sociedade é que precisa se adaptar para incluir esse grupo de pessoas da maneira como elas merecem, e não essas pessoas deixarem de exercer os seus direitos e deveres por falta de estrutura social). 

Pavoroso ver tanto retrocesso em um único documento. Mais pavoroso ainda é ver a tentativa de institucionalização (sob o regime de urgência) de tantos absurdos juntos que ferem de morte um dos postulados mais importantes da República Federativa do Brasil, qual seja, a dignidade da pessoa humana. 

Tal fato me faz repetir o que tenho sempre dito em meus posicionamentos: a deficiência não é da pessoa, ela é social. E como sociedade, estejamos fortes para lutar contra despautérios como esse.

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