Por Flávia Albaine, no Justificando (via Outras Mídias)
No final do mês de novembro foi apresentado, pelo atual ministro da economia, Paulo Guedes, o Projeto de Lei 6159/2019¹ aos membros do Congresso Nacional para apreciação sob o regime de urgência. Ao que nos parece, urgência para legalizar de vez o desrespeito para com as pessoas com deficiência.
De acordo com o artigo 64 da Constituição Federal, o presidente da República pode solicitar tramitação de urgência para os projetos de sua autoria. Nesses casos, a Câmara possui 45 dias para votação e o Senado mais 45 dias. Se o projeto não for apreciado dentro de tal período, poderá haver o travamento da pauta da Casa (Câmara ou Senado) em que ele estiver tramitando, impedindo que outras propostas legislativas sejam votadas. Na data de 03.12.2019 o presidente da Câmara assumiu o compromisso de que o referido projeto de lei não irá tramitar enquanto durar o seu mandato, entretanto, o pedido de urgência ainda não foi retirado formalmente pelo presidente da República.
Tal projeto, eivado de inúmeras inconstitucionalidades, ilegalidades e imoralidades, tem por finalidade alterar algumas legislações que versam sobre as pessoas com deficiência, objetivando, assim, a supressão e a diminuição de alguns direitos que foram duramente conquistados por esse grupo de pessoas. Cremos, inclusive, que o nome mais apropriado para tal documento seria “show de horrores”.
Dentre as inúmeras atrocidades trazidas, iremos enumerar algumas delas (sem prejuízo de outras que não serão abordadas nesse artigo) com a indignação não apenas de uma Defensora Pública que luta por mais inclusão da pessoa com deficiência, mas, principalmente, com a indignação de uma pessoa humana estarrecida com o grau de crueldade a que se chega para com o trato de grupos vulneráveis – e o pior: a legalização dessa perversidade à margem da Convenção da ONU sobre os direitos das pessoas com deficiência (incorporada pelo Brasil com status constitucional), da Lei Brasileira de Inclusão, da Constituição Federal e de outros diplomas nacionais e internacionais que versam sobre direitos humanos.
Inicialmente, o documento foi elaborado sem qualquer interação com as organizações representativas das pessoas com deficiência, afrontando a regra “Nada sobre nós, sem nós”, prevista nos artigos 3º e 4 º da Convenção da ONU acima citada. Ou seja, impõem-se alterações significativamente negativas na vida das pessoas com deficiência, sem que as suas instituições representativas tenham sido chamadas para diálogo e participação.
O projeto de lei também traz mudanças no instituto do auxílio-inclusão previsto no artigo 94 da Lei Brasileira de Inclusão. Tal instituto é voltado para pessoas com deficiência moderada ou grave, incentivando-as a se inserir no mercado de trabalho para exercer atividade remunerada de forma regular, uma vez que as pessoas com deficiência geralmente têm gastos bem maiores do que as outras pessoas para a inserção no trabalho, o que se deve aos obstáculos encontrados. O valor do auxílio é pago juntamente com o salário, e não se confunde com o benefício de prestação continuada. O projeto de lei 6159 / 2019 impõe várias condições cumulativas para que a pessoa com deficiência venha a conseguir tal auxílio, desfigurando, assim, os objetivos que levaram à criação de tal instituto, já que na prática poucas pessoas irão conseguir receber o mesmo. Ademais, estabelece que o beneficiário solicite a suspensão do benefício de prestação continuada antes mesmo de saber se terá direito ou não ao auxílio-inclusão. E mais: os novos critérios de manutenção e revisão do auxílio-inclusão serão feitos por ato do poder executivo federal e não mais por lei. Portanto, o que vemos é a desvalorização total ao trabalho da pessoa com deficiência.
Mais uma atrocidade trazida pelo projeto ocorre em relação ao segurado, que está em gozo de benefício por incapacidade temporária para o trabalho e insuscetível de recuperação para a sua atividade habitual: ele deverá estar habilitado para outra atividade que garanta a sua subsistência, do contrário, ele deverá se submeter a processo de reabilitação profissional para o exercício de outra atividade. Não importa que essa outra atividade não seja a sua e também não importa que a pessoa venha a ganhar salários bem inferiores da função anteriormente desempenhada. E ainda: os segurados não terão direito de se manifestar contra a reabilitação profissional, sob pena de cessação do auxílio incapacidade. Imaginemos, por exemplo, um engenheiro que por motivos de saúde não possa mais exercer a sua atividade habitual. Ele poderá ser obrigado a trabalhar como auxiliar geral, mesmo com salários mais baixos, para que não seja despedido e nem fique fora do regime de previdência. Percebe-se, portanto, total desrespeito com uma pessoa já fragilizada, tanto por motivos de saúde, como emocionalmente por não poder mais exercer a sua atividade habitual.
Esvaziamento da Lei de Cotas:
Mudanças significativas – e não menos horrendas – também sobre as cotas que as empresas precisam observar para a contratação de pessoas reabilitadas ou pessoas com deficiência (os percentuais dessas cotas estão previstos no artigo 93 da Lei 8213/91), havendo um completo esvaziamento de tal instituto. A cota de aprendiz (aprendiz é o jovem contratado com idade entre 14 e 24 anos para ser capacitado na instituição formadora e na empresa, combinando teoria e prática) passa a ser computada também para a cota de pessoa com deficiência, diminuindo mais uma vaga no mercado. Ademais, ficam excluídas das cotas as seguintes situações: atividades cuja jornada não exceda a 26 horas semanais (que são exatamente as jornadas ideais para as pessoas com deficiência), atividades ou operações perigosas, e atividades que restrinjam ou impossibilitem o cumprimento da obrigação (expressão completamente vaga e que dá ensejo ao empregador incluir a atividade que quiser para não observar o sistema de cotas). E mais: as empresas de prestação de serviços terceirizados e temporários que prestam serviços aos órgãos públicos estão desobrigadas de cumprir as cotas.
Ainda dentro das tenebrosas alterações feitas no sistema de cotas de contratação das empresas, o projeto prevê que a empresa troque a contratação de pessoas com deficiência pelo pagamento de uma multa equivalente a dois salários mínimos por cargo não preenchido e que será destinada para um fundo. Ou seja, o direito fundamental ao trabalho de uma pessoa em situação de vulnerabilidade pode ser suprimido pelo pagamento de uma multa! E os absurdos continuam: a contratação de uma pessoa com deficiência grave conta como duas contratações para fins do preenchimento do número de cotas da empresa, podendo a empresa cumprir a sua cota em empresa diversa.
Todos esses aspectos trazidos pelo projeto nos remetem ao modelo da prescindência no tratamento da pessoa com deficiência – que vigorou durante a Idade Média e teve alguns resquícios de aplicação durante o regime nazista – onde é vista como um fardo inútil a ser suportado pela sociedade. De forma similar àquela época, o projeto de lei 6159 de 2019 está colocando essas pessoas à margem da sociedade, excluindo-as do exercício de direitos fundamentais (como o direito ao trabalho) e desestimulando os atores sociais a realizarem a respectiva inclusão, o que, inclusive, fere frontalmente o modelo social de deficiência adotado pelo Brasil (segundo o qual a sociedade é que precisa se adaptar para incluir esse grupo de pessoas da maneira como elas merecem, e não essas pessoas deixarem de exercer os seus direitos e deveres por falta de estrutura social). Todos esses aspectos trazidos pelo projeto nos remetem ao modelo da prescindência no tratamento da pessoa com deficiência – que vigorou durante a Idade Média e teve alguns resquícios de aplicação durante o regime nazista – onde é vista como um fardo inútil a ser suportado pela sociedade. De forma similar àquela época, o projeto de lei 6159 de 2019 está colocando essas pessoas à margem da sociedade, excluindo-as do exercício de direitos fundamentais (como o direito ao trabalho) e desestimulando os atores sociais a realizarem a respectiva inclusão, o que, inclusive, fere frontalmente o modelo social de deficiência adotado pelo Brasil (segundo o qual a sociedade é que precisa se adaptar para incluir esse grupo de pessoas da maneira como elas merecem, e não essas pessoas deixarem de exercer os seus direitos e deveres por falta de estrutura social).
Pavoroso ver tanto retrocesso em um único documento. Mais pavoroso ainda é ver a tentativa de institucionalização (sob o regime de urgência) de tantos absurdos juntos que ferem de morte um dos postulados mais importantes da República Federativa do Brasil, qual seja, a dignidade da pessoa humana.
Tal fato me faz repetir o que tenho sempre dito em meus posicionamentos: a deficiência não é da pessoa, ela é social. E como sociedade, estejamos fortes para lutar contra despautérios como esse.
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