Na última quarta-feira (15/01), o senador Marcio Bittar (MDB/AC), relator da Proposta de Emenda à Constituição 188/2019, que ficou conhecida como PEC do Pacto Federativo, anunciou ao jornal Folha de S. Paulo depois de uma reunião com o ministro da Economia, Paulo Guedes, que pretende acabar com os pisos mínimos destinados à saúde e à educação. O Portal EPSJV entrevistou a pesquisadora Grazielle David, doutoranda em desenvolvimento econômico e pesquisadora do Cecon/Unicamp, assessora da Red de Justicia Fiscal de America Latina y Caribe e conselheira do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes), sobre as principais impactos e a importância da vinculação para ambas as áreas.
O que fim dos pisos significa, na prática, para essas áreas?
Significa que os recursos para essas áreas serão flexíveis, quando hoje são, pelo menos, vinculados ao que se gastava no ano anterior com a variação inflacionária [no caso do governo federal] – como determina a Emenda Constitucional 95, a chamada EC do teto dos gastos. O país já vem experimentando uma perda de investimentos desde a EC 95, já que, antes dela, o investimento era vinculado a uma porcentagem do PIB [Produto Interno Bruto], porcentagem da receita corrente, o que permitia aumentar os valores a serem aplicados. Atualmente temos somente uma correção inflacionária. Mas o que pode ocorrer, caso esse anúncio de desvinculação orçamentária se materialize, é que nem essa mínima garantia existirá mais. Dessa forma, se o orçamento da saúde no ano anterior foi de R$ 100 milhões, no ano seguinte não precisa mais ser o mesmo valor. Pode ser um valor inferior – o que significará a descontinuidade de serviços, a redução de oferta de medicamentos, a paralisação de unidades e a demissão de profissionais. Na prática, o risco de reduzir tanto o acesso quanto a qualidade da saúde e da educação é muito grande.
A retomada dessa proposta, que já havia sido ventilada pelo ministro da Economia em seu discurso de posse é uma surpresa? A proposta articulada pelo governo federal com o Senado que ainda está na PEC 188, de juntar o mínimo da saúde e da educação e flexibilizar os gastos, já era considerada uma derrota? Por que isso agora?
É uma surpresa porque quando o Guedes anunciou [a intenção de desvincular] pela primeira vez houve uma forte repercussão reativa à proposta. Surpreende que seja o Legislativo agora que traga essa pauta. Não é frequente o Legislativo levantar essa questão. Ainda mais em ano eleitoral, quando a população coloca a saúde e a educação como dois direitos essenciais e prioritários. A proposta de Guedes qu consta na PEC 188 atualmente, de juntar o mínimo das duas áreas, já era considerada um retrocesso porque colocava essas áreas importantes em conflito, brigando entre si por recursos públicos, quando, na verdade, um direito não tem que disputar orçamento com outro direito. Existe uma série de outros mecanismos que permitem garantir recursos de uma forma mais apropriada do que colocar as áreas sociais que asseguram direitos constitucionais em disputa por recursos. Mas essa proposta de acabar com os pisos é, de longe, a mais dramática.
É correto afirmar que se isso for aprovado, os pisos seriam desvinculados e os governos poderiam decidir livremente em que gastar?
Sim, todo o orçamento ficará livre para que os três entes federados usem esse recurso para gastos em qualquer outra área que não seja saúde ou educação.
Com essa medida aprovada podemos considerar o fim da saúde e educação pública?
Não necessariamente significa o fim, mas uma mudança grande em relação ao que a gente entende que está previsto na Constituição. Hoje, temos a determinação de que a saúde é um direito público, universal, integral, que tem o objetivo de ser gratuita e de qualidade. Mas isso poderá mudar de várias formas. A primeira tem relação com a cobertura (que o SUS dá a população, hoje universal). Pode ser que se reduza a cobertura, que ela não seja mais para todo mundo, que seja uma saúde pública focalizada, como nos Estados Unidos, onde só uma população muito vulnerável e pobre recebe subsídio público. Ou pode ser que seja uma mudança na integralidade. No lugar de termos todos os níveis de assistência, começando pela saúde primária, passando por exames complementares, atendimento hospitalar, tratamentos oncológicos, etc. poderemos ter limitações. Em vez de chegar aos tratamentos de alta complexidade, com muita densidade tecnológica, talvez haja uma limitação do SUS à atenção primária, por exemplo. Essa proposta tem o potencial de transformar o SUS num pacote limitado de serviços e medicamentos, como recomenda o Banco Mundial ou mesmo próximo da proposta da cobertura universal da Organização Mundial de Saúde, que prevê que todas as pessoas tenham um pacote de serviços.
Qual a importância da vinculação de receita?
A garantia de um direito público passa pela realização de uma política. E não existe realização de uma política pública sem recurso orçamentário. Se a gente pensa em saúde e educação precisa garantir profissional, equipamento, estrutura. Tudo isso demanda recurso público. E quando o país já tem uma capacidade instalada isso não quer dizer que os gastos vão diminuir. Até porque as demandas da sociedade aumentam. Se a população envelhece, aumenta a demanda por mais recursos. O surgimento de novas tecnologias, idem, já que precisa de mais formação e atualização, entre tantas outras coisas. Hoje nós não temos uma cobertura universal nem de educação, nem de saúde. Existe demanda de acesso e também de integralidade em ambas as áreas. Sem recurso adequado é inviável garantir que isso seja de fato executado. Querer dizer que a desvinculação da receita não é importante, como estão falando, é desconsiderar custos. Quando a gente avalia custo de um serviço, ainda que se faça uma excelente gestão, a redução tem limites. Basta olhar para o setor privado e concluir que não tem redução de custos. Manter uma estrutura demanda bastante recurso. Saúde e educação são duas áreas que demandam muitos profissionais. Elas são feitas com pessoas Essas despesas com pessoal são essenciais para a garantia desses direitos.
Como isso foi construído ao longo do tempo?
Tudo começa com a Constituição de 1988. Quando se estabeleceu esses direitos também se estabeleceu como esses direitos serão financiados. No caso da saúde, esse processo levou anos para ser construído. A demanda por uma vinculação orçamentária foi constante, mas só em 2000, com a Emenda Constitucional 29, é que se iniciou esse processo de vinculação e garantia de recurso público. E isso foi essencial. É a partir desse marco que a saúde é fortalecida, que aumenta a oferta de serviços, a contratação de pessoal, o acesso, a integralidade… O Sistema Único de Saúde se tornou referência para todo o mundo em diversas áreas, como transplante, tratamento oncológico, vigilância sanitária e epidemiológica. Só que ainda existem gargalos, e muitos deles passam pelas dificuldades orçamentárias. Apesar de a EC 29 ter sido aprovada, ela exigia ainda uma lei complementar que a regulamentasse. Isso só ocorreu 12 anos depois, com a LC 141, que durou pouco tempo porque logo na sequência veio a EC 86/15 que afetou o financiamento da saúde. E, em seguida, a EC do teto dos gastos, de 2016, que afeta mais seriamente todo o orçamento público federal. E, por fim, surge agora essa proposta de acabar por completo com a vinculação orçamentária – o que, definitivamente, vai inviabilizar a política pública de saúde conforme prevê a Constituição de 1988. Isso é uma mudança na essência da Constituição que é cidadã, que garante direitos sociais fundamentais. A partir disso, inclusive, cabe questionamento jurídico de inconstitucionalidade da proposta.
Ao fim, podemos compreender que a intenção é de reduzir saúde e educação como direitos fundamentais e integrais para, em substituição, apostar em políticas bastante focalizadas nos mais pobres ou em políticas não integrais, que estejam limitadas a só uma etapa, como o ensino fundamental no caso da educação, e a atenção primária no caso da saúde.
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