Por Lenir Santos**, Francisco Funcia***, Thiago Campos****
A crise mundial da saúde pública, em razão da Covid-19, tem elevado o nível de estresse político, social, individual e muitas vezes atrapalhado a tomada de decisão em tempo oportuno e de forma sensata, favorecendo o oportunismo político de alguns governantes. Vê-se que a sensatez nem sempre surge nas piores crises. Quando deve prevalecer a ciência e a racionalidade, alguns são tomados pela ignorância.
No momento, a questão mais tormentosa no Brasil – e não deveria ser – é a imunização contra o novo coronavírus que aliviará a situação emergencial vivida. Há diversos estudos clínicos fase 3, com a aprovação emergencial da vacina da Pfizer no Reino Unido que começou a ser aplicada nesta semana, e a coronavac que deve obter autorização na agência reguladora chinesa.
O Brasil desenvolve parceria para testes e produção de duas vacinas, a da Universidade de Oxford e a coronavac, pela Fiocruz e pelo Instituto Butantã, respectivamente, sem deixar de esquecer a parceria entre a Tecpar do governo do Paraná na pesquisa da vacina russa.
Ao mesmo tempo em que se desenvolvem os estudos finais das vacinas, caberia ao Ministério da Saúde, como dirigente nacional do SUS, art. 9° da Lei n° 8.080, de 1990, responsável pela coordenação do Plano Nacional de Imunização desde 1975, Lei n° 6.259, desenvolver, em articulação com os secretários estaduais e municipais de saúde, a planificação e logística para a vacinação da população ocorrer o mais breve possível. Negociar com as farmacêuticas a compra, ainda que condicionada, das vacinas com evidência de sucesso e adquirir os insumos necessários e prover na lei orçamentária de 2021 os recursos para essa despesa.
Não há nenhum recurso programado para o enfrentamento da Covid-19 na proposta orçamentária do Ministerio da Saúde para 2021 - trata-se de despesa que deve ser prevista, inclusive pela retomada do aumento de casos desde o final de novembro. É preciso que essas despesas constem do orçamento de 2021 - a partir de janeiro, para além da vacinação da população, que por ser previsível desde logo não se enquadram nas condições estabelecidas pela Constituição Federal para abertura de crédito extraordinário durante o exercício de 2021.
Essa omissão orçamentária 2021 pode ser explicada pela limitação estabelecida para a programação de despesas do Ministério da Saúde no valor de 123,8 bilhões, que é o valor do piso federal para o ano de 2021 e que, pelas regras da EC 95/2016, corresponde ao valor do piso de 2017 atualizado pelo IPCA. Vale registrar que em 2017 não havia Covid-19, bem como a população cresceu em torno de 0,8% ao ano. Nestes termos, está evidenciada a gravidade de um dos dispositivo do projeto de Lei de Diretrizes Orcamentarias 2021, que estabelece a retomada da política econômica de austeridade fiscal do governo federal, sendo o teto de despesas primárias da EC 95/2016 (no valor de 2016 atualizado pelo IPCA) a âncora fiscal fixada pelo governo federal ameaçando o direito à vida. O resultado disso é a redução do orçamento do MS para 2021 em cerca de 40 bilhões, comparados aos valores autorizados para 2020.
Todavia, o caminho seguro e eficaz para essa fase da vacina, não é o que está sendo trilhado pelo Ministério da Saúde que precisou se curvar a decisão do presidente da República que negou a compra da vacina coronavac por motivos políticos, conforme noticiado na imprensa, que agora parece voltar atrás, gerando mais dúvidas e confusão para a população num ambiente já conturbado pela Covid-19.
Em plena pandemia, essas atitudes implicam em agravos à saúde desnecessários e mortes evitáveis. São ações ou omissões que contrariam a ciência, o bom senso, a responsabilidade pública, gerando tumulto onde deveria reinar a racionalidade e o sentido de urgência para diminuir os alvoroços próprios da pandemia.
Isso tudo certamente levará a questionamentos jurídicos desnecessários se não houver coordenação nacional articulada com os estados e municípios sobre o Plano Nacional de Imunização (PNI). Questionam os estados suas competências para a compra de vacina sem autorização do Ministério da Saúde e sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) por força do disposto na Lei n° 13.979, de 2020. O seu artigo 3°, inciso VIII, que reza:
Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas:
VIII – autorização excepcional e temporária para a importação e distribuição de quaisquer materiais, medicamentos, equipamentos e insumos da área de saúde sujeitos à vigilância sanitária sem registro na Anvisa considerados essenciais para auxiliar no combate à pandemia do coronavírus, desde que:
a) registrados por pelo menos 1 (uma) das seguintes autoridades sanitárias estrangeiras e autorizados à distribuição comercial em seus respectivos países:
1. Food and Drug Administration (FDA);
2. European Medicines Agency (EMA);
3. Pharmaceuticals and Medical Devices Agency (PMDA);
4. National Medical Products Administration (NMPA).
§ 7º As medidas previstas neste artigo poderão ser adotadas:
IV – pela Anvisa, na hipótese do inciso VIII do caput deste artigo.
§ 7º-A. A autorização de que trata o inciso VIII do caput deste artigo deverá ser concedida pela Anvisa em até 72 (setenta e duas) horas após a submissão do pedido à Agência, dispensada a autorização de qualquer outro órgão da administração pública direta ou indireta para os produtos que especifica, sendo concedida automaticamente caso esgotado o prazo sem manifestação.
A autorização excepcional para a aquisição de medicamentos sem registro no país, desde que com registro em ao menos uma das quatro autoridades sanitárias elencadas no inciso VIII do art. 3°, depende exclusivamente da Anvisa no prazo de 72 horas, a contar do pedido, sendo considerada concedida de modo automático, caso não haja manifestação dentro desse prazo.
Os estados tanto quanto os municípios, que são responsáveis de modo solidário (decisão do STF) pela saúde da população, tendo competência para, na ausência de um plano nacional de imunização, adquirir vacina, desde que se cumpra o disposto nas regras acimas transcritas. Mas esse não é o caminho ideal. O país precisa de união, de Plano Nacional de Imunização como sempre teve há mais de quarenta anos.
Sendo o SUS um sistema público de saúde definido como o resultado da integração das ações e serviços de saúde dos entes federativos, causa espécie que, numa crise sanitária de repercussão nacional e internacional, essa articulação mais que necessária se veja esgarçada por questões políticas ou de negação da gravidade da situação sanitária com mais de 177 mil pessoas mortas, obrigando cada ente federativo a discutir plano estadual ou até municipal de vacinação, descumprindo a Constituição que em seu artigo 198 que define o SUS como um sistema único interfederativo de saúde.
Outro aspecto relevante, que já deveria estar em discussão e que precisa ser objeto de estudos detalhados, são as prioridades na vacinação, como exemplo as pessoas com deficiência que sempre foram consideradas com grupos prioritários pelas suas especificidades, com leis próprias determinando atendimento prioritário na saúde.
Todos esses aspectos poderão provocar mais judicialização na saúde, totalmente desnecessária e inoportuna, uma vez que é de clareza meridiana que vacina é direito de todos e dever do Estado e a lei bem define o responsável pela coordenação do PNI. Não é hora de dar ensejo a judicialização individual daquilo que tem caráter coletivo, por omissão do Estado.
Parece que o bem comum saiu pelas portas do fundo para interesses não-públicos entrarem pela porta da frente. Tudo em detrimento dos valores sociais, da virtude cívica que o país precisa reviver para fortalecer a estima social, garantindo vacina já para toda a população brasileira. É preciso unir forças para que as pessoas não mais vivam com medo e com perdas. Vacina já pode ser um apelo social de união da população em torno de um direito fundamental constitucional que é gozo de boa saúde.
*IDISA: Instituto de Direito sanitário Aplicado
**Lenir Santos, advogada, doutora em Saúde Pública pela Unicamp, professora colaboradora do Departamento Saúde Coletiva Unicamp e presidente do Instituto de Direito Sanitário – IDISA.
***Francisco R. Funcia, Mestre em Economia Política pela PUCSP, Professor e Coordenador-Adjunto do Observatório de Políticas Públicas, Empreendedorismo e Conjuntura da USCS e Consultor Técnico do Conselho Nacional de Saúde.
****Thiago Campos, advogado sanitarista e Diretor Regional Nordeste do IDISA.
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