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sábado, 21 de fevereiro de 2009

Progresso a custo de quê? (no blog do Noblat)

Em 1983, centenas de famílias quilombolas foram desalojadas compulsoriamente pelo governo militar para a construção de um centro de pesquisas espaciais em Alcântara, no Maranhão. Há hoje um projeto de expansão do centro que afetaria comunidades locais que sobrevivem da pesca, da agricultura familiar e do artesanato e que são as grandes responsáveis pela preservação ambiental na região.

Baseado em premissas inverídicas, o artigo "Não é para qualquer país", de Ateneia Feijó, faz uma leitura equivocada da questão e cita a Justiça Global (chamando-nos de "ONG internacional", o que não somos). "Custa tanto aos quilombolas ceder 5 mil hectares?", pergunta. Os próprios moradores de Alcântara nos falam sobre o custo de deixar a terra que é da família há várias gerações e abandonar a casa depois de uma vida de 30, 80 anos. São sentimentos, e não números.

Em 2000, em parceria com representantes locais, denunciamos à OEA a violação do direito constitucional que diz que "aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos". A Convenção 169 da OIT, ratificada pelo Brasil, também vai por aí, mas alguns grupos esquecem a democracia ao ignorar a Constituição e tratados internacionais.

A expansão do centro é fundamentalmente um projeto comercial. O avanço para o país – defendido pelo discurso oficial – é o aluguel de nosso território para outros lançarem satélites (daí o convênio com a Ucrânia e as conversas com China e Rússia). Ateneia fala em ampliar a "pequena infra-estrutura local" e "capacitar e priorizar os quilombolas como mão-de-obra", mas ignora que é dever primário do Estado, independente de interesses, proporcionar condições dignas de moradia e trabalho.

A promessa de "infra-estrutura" foi feita já em 83 e, até hoje, a alguns metros de um centro "de ponta", comunidades ainda vivem sem serviços públicos de saúde, educação, energia elétrica ou saneamento básico. A "capacitação" – pintada como ação social de efeito – é elaborada a partir de uma perspectiva utilitarista da "mão-de-obra quilombola": transformar o filho do pescador em faxineiro ou montador não é investir de forma compromissada na formação da população.

O que está por trás é a resistência da elite nacional – reproduzida no governo e na mídia – em aceitar pessoas humildes e negras com títulos de propriedade de áreas cobiçadas para empreendimentos lucrativos, como é o caso da região de Alcântara. Para alguns, o parecer técnico do INCRA que identifica o território étnico de Alcântara será sempre absurdo, não importando as circunstâncias e a lei. Prevalece, sob a bandeira de ordem e progresso, o conceito de que certos direitos não são pra todos.

O respeito às comunidades tradicionais deve ser fortalecido, sobretudo em países de colonização baseada no trabalho escravo. Deve-se casar o "progresso" (tal como o entendemos) e os direitos das comunidades, reparando injustiças históricas e respeitando assim suas formas de organização, seu papel na preservação do meio-ambiente e a contribuição de suas culturas para a formação de identidades nacionais.

Cabe a nós, sociedade brasileira, entrar no debate e procurar saber para quê e para quem certos projetos são desenhados – e a que custo são implementados. Afinal, o que nos vale mais: a "melhor base espacial do planeta", ou o direito de nossa gente?

Andressa Caldas, diretora jurídica da Justiça Global

Gustavo Mehl, assessor de comunicação da Justiça Global

Luciana Garcia, advogada da Justiça Global

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