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domingo, 27 de setembro de 2009

Do caco de vidro à cidade dos cacos

Victor Garritano Barone do Nascimento (no Noblat)

Moro em uma casa, vizinha a um antigo prédio residencial com marquise e duas pequenas lojas no térreo.

Certa noite, ao chegar em casa por volta das 22 horas, vi um vizinho, morador do prédio, quebrando garrafas em frente às lojas que já estavam fechadas.

Perguntei o que estava havendo e ele respondeu que estava quebrando aquelas garrafas para que “mendigos” não dormissem ali.

Minha rua é tranqüila para os padrões da cidade do Rio de Janeiro, próxima a um batalhão da polícia militar, sem assaltos, flanelinhas, camelôs, vendedores ambulantes e “mendigos”.

Raramente moradores de rua dormem por aqui, mas nos últimos anos, eventualmente, é possível observar este fenômeno de segunda a sexta.

Fato que coincide com a intensificação do processo de especulação imobiliária no meu bairro. Sítios e casas têm dado lugar a prédios que ocupam 80% da área total de terrenos antes arborizados com espécies da mata atlântica.

Muitos dos operários dessas obras moram longe e em outros municípios da região metropolitana.

Estes trabalhadores dependem de um sistema de transporte público caro e precário para enfrentar, diariamente, longas viagens entre o lugar em que residem e o lugar em que trabalham.

Para economizar, alguns dormem nas ruas durante a semana e é provável que um deles tenha tentado dormir sob a marquise do prédio do meu vizinho.

As garrafas que meu vizinho quebrou surtiram efeito e naquela noite a pessoa que dormia em baixo daquela marquise foram obrigada a dormir em outro lugar: embaixo da marquise do vizinho da frente, do outro lado da rua.

A lógica tosca e individualista do meu vizinho não é nenhuma novidade, apenas uma reprodução do nosso meio, do velho hábito de passar o problema adiante para que outros resolvam.

O governo Brizola fez o mesmo durante a Rio 92, só que em larga escala, forçando moradores de rua a migrarem do Centro para Vila Isabel, Tijuca e até Niterói.

Contudo, não vamos demonizar o velho caudilho gaúcho, a genealogia de tal hábito na vida pública ou privada possui raízes muito mais profundas.

Para descobrir suas origens teríamos que voltar várias décadas e séculos da nossa história de modo que as poucas linhas deste modesto artigo seriam insuficientes para tamanha tarefa.

Não vamos medir a profundidade dessas raízes, queremos apenas mostrar de que se alimentam, para compreender melhor a árvore e seus frutos.

Meu vizinho não procurou nenhum órgão municipal ou estadual porque, apesar de ser tosco, ele sabe que haveria um jogo de empurra e ninguém resolveria o problema naquele momento, no pequeno espaço de tempo de algumas horas.

Tal qual meu estulto vizinho, nosso prefeito sabe que é mais fácil instalar divisórias nos bancos das praças para que moradores de rua não consigam deitar, do que elaborar um conjunto de políticas integradas para combater o problema a curto, médio e longo prazo.

Políticas que vão do planejamento do transporte público em conjunto com outros municípios da região metropolitana, até uma política de assistência social para a população de rua, com hotéis populares em áreas estratégicas onde assistentes sociais e psicólogos fariam uma triagem dos casos, dando tratamento diferenciado a moradores de rua eventuais, permanentes e pessoas com problemas mentais.

A mesma lógica impera nas ações da prefeitura e do estado para uma variedade sem fim de problemas que vão desde as ineficazes operações de repressão à prostituição de rua, até a construção de muros para conter o crescimento das favelas que o Secretário Municipal de Ordem Pública, Rodrigo Bethlem, tem a toleima de chamar de “muros de cidadania”.

Outro exemplo é a lei 5346/2008, sancionada pelo governador Sérgio Cabral, que reserva 5% das vagas em universidades estaduais para portadores de deficiência, filhos de policiais, bombeiros, inspetores de segurança e administração penitenciária mortos ou incapacitados em razão de serviço, ao invés de pagar uma pensão digna para as famílias desses profissionais.

A lógica de Brizola, Eduardo Paes, Sérgio Cabral e muitos outros políticos é exatamente igual a lógica do meu vizinho. O que muda é a escala de tempo.

Elaborar políticas sérias leva tempo, enquanto o banco anti-mendigo, as operações de repressão babacanas, o muro para cercar a favela e as cotas são medidas rápidas, baratas, que geram factóides e votos.

Da mesma forma, no caso do meu vizinho, cobrar do município e do Estado uma política séria e digna para resolver o problema da população de rua também leva tempo, ao passo que encher a calçada de cacos de vidro é mais rápido, fácil, barato e, aparentemente, eficaz.

O resultado é que, na primeira década do século XXI, o carioca elegeu um prefeito-síndico que nomeou um secretário-porteiro para cuidar da ordem pública e uma cidade com a complexidade do Rio de Janeiro passou a ser administrada com a simplicidade de um condomínio.

Seguimos em frente acumulando cacos até chegar o dia em que não poderemos sair mais de nossas casas sem cortar nossos pés e mãos.

Victor Garritano Barone do Nascimento é geógrafo.

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