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segunda-feira, 19 de outubro de 2009

'Gosto e poder' repensa indústria de vinhos

Bolívar Torres, Jornal do Brasil

RIO DE JANEIRO - Como uma espécie de Michael Moore etílico (mas menos manipulador e maniqueísta), Jonathan Nossiter viajou por Brasil, Nova York e os terroirs franceses, entrevistou chefs, argumentou com enólogos, desconstruiu o palavreado vazio e codificado dos críticos e visitou vivinículas e restaurantes. Seu esforço, agora concretizado no livro Gosto e poder, se deu em busca de uma maneira mais democrática de se relacionar com o vinho. E deve voltar a causar polêmica.

Há cinco anos, Nossiter provocava um terremoto com seu documentário Mondovino, um grito de socorro à bebida, cuja diversidade estaria cada vez mais ameaçada pela globalização. Insurgindo-se contra a padronização do gosto imposta pela indústria do luxo, o diretor, ele próprio ex-sommelier e um consumidor apaixonado, bateu de frente com alguns dos mais poderosos porta-vozes desse sistema, como o enólogo Michel Rolland e o crítico Robert Parker (este último chegou a chamá-lo de “estúpido” e “intolerante”). Depois do sucesso do filme (indicado à Palma de Ouro em Cannes e vencedor do César), Nossiter retoma à linha de ataque com Gosto e poder.

– Nos Estados Unidos, onde o consumo é o mais determinante para o público mundial, houve reações violentas ao meu documentário – relembra Nossiter por telefone, falando do interior de um táxi em Paris, onde monta seu próximo filme, Rio sex comedy. – Fui atacado pessoalmente várias vezes. Na França, por exemplo, me meti em mais uma polêmica. Cruzei num restaurante em Paris com um dos gurus do vinho, que está retratado no livro. Ele me chamou de “idiota” e disse que eu “não entendia nada da bebida”. Mas não quero entender! Para mim, dizer que se entende de vinho é a mesma coisa do que dizer que se entende a vida...

Não à padronização

A tese de Gosto e poder é a mesma de Mondovino. Sob a influência de alguns poucos tubarões, a outrora complexa cultura dos vinhedos se afundaria na uniformização fácil e infantil. A submissão ao gosto e ao poder de gente como Parker e Rolland transforma os vinhos em bombas açucaradas e alcoolizadas, fáceis de produzir em qualquer lugar e a qualquer preço (“versão de luxo da bomba frutada monolítica padronizada”, define o autor).

“O consumo do vinho, alçado ao pedestal do alto luxo, despojado de qualquer relação com prazer e descoberta, torna-se uma descarada expressão da intimidação psicomercantil que chega bem perto do roubo”, descreve o autor.

Uma suposta popularização que esmaga os vinicultores que sobrevivem à sua margem, produzindo bebidas mais difíceis, ressonantes, com um gosto único, que se impõem como um desafio a quem o bebe. É a chamada cultura do terroir – a ideia de que cada lugar tem sua particularidade, sua diversidade e tolerância ao passado e consciência de origem de cada um. E que Nossiter, um cosmopolita (nasceu nos EUA, cresceu entre França, Itália, Inglaterra, Índia, e hoje mora no Rio), não se cansa de defender.

– Alguns confundem minha posição com uma postura aristocrática, mas não é isso – diz Nossiter. – Há uma má compreensão do que é democrático e o que é afirmação do gosto. Eu tenho respeito à escolha do outro. No livro, apenas convido às pessoas a repensar junto comigo a estrutura do atual sistema.

Nossiter diz que não se arvora a dizer o que é certo e o que é errado no mundo dos vinhedos.

– Não é como se eu tivesse a solução. Aliás, desconfio de todo mundo que tem uma solução, como os supostos gurus de todas as áreas, artes plásticas, cinema, literatura, vinho... São agentes de uma formatação do gosto que estão dizendo a todos que o que importa é o prazer imediato, através de mecanismos para enganar as pessoas.

Rude como Cassavetes

Dando à bebida a dimensão de um espelho da humanidade, Nossiter cria paralelos com a industria artística e cultural. Afinal, é a mesma globalização que afeta todos os sistemas, e que não deixa de afetar um mundo que o autor conhece bem – o cinema. O autor relembra das vezes em que foi a Hollywood negociar com estúdios. Em todas as vezes, assustou-se com as semelhanças entre a visão deles de cinema e a sua sobre o sistema de produção dos vinhos californianos, que vem servindo de modelo para a indústria mundial.

“Nos dois casos, o 'gosto californiano' pode se revelar admirável, em termos de inteligência na feitura e de coerência do discurso; mas está claro que, tanto no vinho como no cinema, esse modelo deixa pouco espaço para os prazeres acidentais e as afinidades históricas, que, ao menos para mim, são essenciais à felicidade”, descreve o autor.

Não por acaso, compara a bebida com o estilo de cineastas. Assim, os grand crus Mazis Chambertin, por exemplo, seriam “rudes, imprevisíveis e intermitentes” como as obras de John Cassavetes, pioneiro do filme independente nos EUA.

– O mundo do vinho me dá mais esperanças do que o do cinema – lamenta Nossiter. – O cinema como entendemos hoje está morrendo. Há sete anos, quando fiz Mondovino, o vinho estava na mesma situação, mas vinicultores corajosos lutaram contra isso. Espero que meus colegas cineastas tenham a mesma postura.

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