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terça-feira, 27 de abril de 2010

O que é mais importante em saúde: a igualdade ou a eqüidade?

no Monitor de Saúde

André Medici

Introdução

Amartya Kumar Sen, Prêmio Nóbel de economia em 1998, tem uma notável contribuição aos temas associados a luta pela eqüidade, geração de capital humano, capital social, escolhas públicas e liberdade econômica. Uma das contribuições de Sen que mais me marcaram foi a diferenciação que ele faz entre os conceitos de igualdade e de eqüidade. Para ele, igualdade é um valor moral, enquanto que eqüidade é uma questão de justiça. Em suas palabras, a igualdade, enquanto idéia abstrata não tem força, mas a eqüidade é uma expressão de justiça social, a qual se destina a corrigir desigualdades que podem ser evitadas na distribuição das capacidades básicas dos indivíduos, que são de responsabilidade social (ou seja de todos).

Quando tomei contacto pela primeira vez com as contribuições econômicas e filosóficas de Amartya Sen, no início dos anos noventa, olhei para traz um pouco envergonhado com a nossa bem intencionada Constituição de 1988, que em seu artigo 196, institui o nosso Sistema Único de Saúde (SUS) com acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde. A Constituição arremata, em seu artigo 198, que o SUS seria financiado totalmente através de recursos públicos. O termo eqüidade só aparece em toda a Constituição de 1988 uma vez, no artigo 195, quando se refere a origem dos recursos da Seguridade Social, mas nenhuma menção se faz à eqüidade na entrega de serviços do SUS.

Comecei, desde então, a expreitar o evolução do SUS para ver se ele continuaria viajando em idéias abstratas e adiando a busca pela justiça social. Felizmente, nos anos noventa, vários processos contribuiram para tornar efetiva a implantação do SUS. Os programas de agentes comunitários de saúde (PACS) e de saúde da família (PSF), a Norma Operacional Básica (NOB) de 1996, criando o Piso de Atenção Básica e definindo um conjunto de ações básicas de saúde, entre outras importantes medidas, trouxeram a esperança de que a eqüidade estava a caminho e poderia ser um dia alcançada. Todas essas ações, ainda que buscassem a igualdade, ao serem de acesso público gratuito e universal, atendiam mais diretamente às necessidades dos mais pobres, ou seja,daqueles que não tinham emprego formal, recursos econômicos e viviam em áreas remotas e inacessíveis. Ao assim fazer, elas também promoviam a eqüidade.

Entre 1994 e 2002, as coberturas de programas como o PACS e o PSF se expandiram a taxas anuais de 25% e 73% respectivamente. Estes programas aumentaram sua cobertura de 10% para 53% e de quase nada para 34% da população brasileira, respectivamente. Neste periodo, a taxa de mortalidade infantil caiu de 34 para 19 por mil nascidos vivos. Definitivamente havia a certeza de que o país estava a passos firmes no caminho da equidade e que antes de 2010, com esse rítmo, todos os pobres estariam cobertos pelos programas de atenção básica. Tudo isso ocorria em meio a um crescimento econômico não muito intenso, em função da situação desfavorável da América Latina na economia mundial.

Entre 2003 e 2008, a economia internacional melhorou muito e a do Brasil também. Nossas taxas de crescimento aumentaram e a estabilização econômica iniciada na segunda metade da década de noventa consolidou as bases para a retomada do desenvolvimento econômico e social. No entanto, as esperanças de que todos os pobres estivessem cobertos pelo PACS e pelo PSF até 2010 acabou não se consubstanciando. Segundo dados do DATASUS, entre 2002 e 2008 a cobertura nacional do PACS passou de 53% para 61% e a do PSF de 33% para 49%. As taxas de mortalidade infantil que se reduziram ao rítmo acelerado de 8% ao ano entre 1994 e 2002 continuaram a cair no período 2002 e 2006, só que a um rítmo mais lento (5% ao ano), alcançando os 16 por mil nascidos vivos em 2006.

Brasil: Um longo caminho a percorrer para alcançar a eqüidade em saúde

De acordo com os dados da PNAD 2008, cerca de 48% da população brasileira estava cadastrada no PSF. Considerando que 26% da população estava, coberta por planos privados de saúde, se pode dizer que 74% da população tinha acesso à atenção básica estruturada e 26% necessitava de cobertura. Portanto, o limite pelo qual deveria alcançar a cobertura nacional do PSF era de 74%, dado que os demais 26% estariam cobertos pela atenção básica dos planos de saúde . No entanto estes 26% sem cobertura estavam inseridos, em sua maioria, nos segmentos mais pobres da população

A proporção de cobertura do PSF variava de acordo com características regionais e de renda. Era maior em regiões onde havia um maior número de pobres e nos domicílios de maior renda. No Nordeste, 65% dos domicilios estavam cadastrados pelo Programa, enquanto que no Sudeste a proporção era de 36%.

O PSF é a melhor forma de cobertura de atenção básica à saúde que a população brasileira desprovida de recursos dispõe. Sua cobertura tem sido sempre progressiva, buscando dar um maior acesso às regiões onde vivem as famílias mais pobres e contribuindo, portanto, para aumentar a eqüidade do SUS. No entanto, nem todos os pobres tem cobertura do PSF. Os dados da PNAD 2008 revelam que nos domicílios sem rendimento ou com renda inferior a um quarto de salário mímimo mensal per-capita, a cobertura do PSF era de 64%, ou seja, mas de um terço do segmento mais pobre do povo brasileiro ainda não tinha acesso ao PSF em 2008.

As ações de saúde básica, para aqueles que podem pagar, são oferecidas pelo sistema de saúde suplementar, de forma voluntária, através de planos privados de saúde. Da mesma forma como ocorre com o PSF, a cobertura de Planos de Saúde se diferencia regionalmente e por nível de renda. A maior cobertura se verifica no Sudeste, onde 36% da população estava coberta por Planos de saúde, e a mais baixa no Norderte onde o percentual de cobertura era de 13%. O mesmo acontece por nível de renda, onde a proporção varia entre 2% nos grupos com renda domiciliar percapita inferior a um quarto de salário mínimo e 83% nos grupos com renda domiciliar per-capita superior a 5 salários mínimos. No entanto, nos estratos de renda mais alta, a cobertura do PSF se complementa com a cobertura de Planos Privados de Saúde (ver gráfico 1).

Para exemplificar, 83% dos domicílios com renda per-capita mensal superior a 5 salários mínimos, estavam cobertos por planos de saúde e 31% estavam cobertos pelo PSF. Mesmo supondo que aqueles que tinham planos de saúde suplementar não usavam o PSF, nos grupos de renda domiciliar per-capita superior a 5 salários mínimos, os domicilios registrados nos dois programas chegava a 114%, indicando que todos neste grupo tinham algum tipo de atenção básica e que pelo menos 14% estavam registrados simultaneamente em Planos de Saúde e no PSF. No entanto, nos domicílios sem rendimento e com renda inferior a um quarto de salário mímino per-capita mensal, a cobertura de planos de saúde somada a do PSF foi de apenas 66,5%, indicando que pelo menos um terço dos residentes nos domicilios mais pobres não tinham nenhuma forma de cadastramento para a cobertura de saúde básica.

O gráfico 1 mostra que, em que pese a progressividade do PSF em relação à renda, ele não conseguiu até 2008 reverter a regressividade total do acesso aos serviços de saúde básica ou, em outras palavras, compensar a distribuição regressiva dos planos privados de saúde os quais se associam, em maior grau, ao acesso ao mercado formal de trabalho ou a capacidade de pagar por planos individuais, para aqueles que não tem cobertura de planos de saúde pela empresa.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Dado que o estado de saúde é, entre outros fatores, resultado do acesso aos serviços de saúde básica, que são capazes de promover, previnir, monitorar e curar problemas básicos e doenças crônicas, se pode dizer que a percepção do estado de saúde da população é diretamente associada ao fato de ela ter ou não acesso aos serviços básicos de saúde. Os dados da PNAD 2008 mostram que 24% das pessoas que viviam em domicilios com renda per-capita mensal inferior a um quarto de salário mínimo, não se consideravam em bom estado de saúde, percentual que era de apenas 12% nos domicílios com renda mensal superior a cinco salários mínimos. Mas mesmo sofrendo por ter um estado de saúde pior, os mais pobres utilizam menos os serviços básicos de saúde que os mais ricos. A proporção de pessoas com renda domiciliar per-capita inferior a um quarto de salário mínimo que não realizou consultas médicas em 2008 foi de 42%, comparado a um percentual de 18% entre as pessoas com renda domiciliar per-capita mensal superior a 5 salários mínimos.

A verdade é que vários fatores contribuem para que os mais pobres não tenham acesso ao PSF e aos serviços médicos por ele propiciados. Entre estes fatores estão as dificuldades de acesso aos serviços de saúde nas regiões mais remotas. O sanitarista Carlos Gentile de Melo mencionou, nos resultados de seus estudos, que a distribuição dos médicos é fortemente correlacionada com a distribuição de agências bancárias e fracamente correlacionada com a distribuição dos pobres e das necessidades de saúde. O fato positivo é que dos anos setenta até hoje, aumentou o número de localidades com agências bancárias, mas estas continuam ainda não chegando ás localidades aonde vivem os mais pobres. Muitos municípios brasileiros ainda não tem mêdico e os postos de saúde estão fechados por falta de pessoal clínico. Existem municípios que chegam a oferecer salários mensais de R$10 mil a R$20 mil mensais para atrair médicos, mas o esforço é em vão. Muitos deles não tem renda para sustentar estes salários por muito tempo nem condições que permitam ao médico resistir ao isolamento social de áreas sem internet e mutas vezes sem eletricidade.

Mas existe ainda uma outra verdade. Ao invés de financiar os programas de saúde da família para aqueles que tem cobertura de planos de saúde, seria melhor direcioná-los para a cobertura dos mais pobres e que dependem exclusivamente do SUS. Aos planos de saúde se deveria cobrar a oferta adequada de atenção básica aos seus segurados e instituições como a Agência Nacional de Saúde Suplmentar (ANS) estão aí para cumprir este papel. Caso contrário, o SUS será sempre um colchão amortecedor das ineficiências da saúde suplementar e esta continuará faturando alto sem prestar uma boa qualidade de serviços aos seus assegurados.

Este processo permitiria utilizar os recursos que hoje sobram nas áreas onde vivem os mais ricos para serem aplicados na atenção básica aos mais pobres que dependem exclusivamente do SUS, permitindo que estes melhorem sua saúde e realizem mais consultas médicas. Quem sabe, ao assim fazer, a próxima PNAD não mostrará mais inequidades tão marcantes na oferta dos serviços básicos de saúde e nas condições de saúde entre ricos e pobres.

Igualdade e Eqüidade em Saúde

Ao propor um acesso igualitário de saúde a todos os brasileiros, o sistema de saúde tende a não estar em sintonia com os preceitos de eqüidade ou da justiça social proposta por Amartya Sen. Existem vários fatores com que fazem com que a igualdade seja um conceito abstrato.

Para começar, existem diferenças genéticas entre os indivíduos que fazem com que eles tenham estados de saúde diferentes e necessidades diferenciadas de acesso aos serviços. Por outro lado, a história de vida individual, o comportamento de cada um e os fatores sociais, culturais e ambientais, expõe os indivíduos a distintos naipes de risco que influenciam no seu estado de saúde e, portanto, em suas necessidades de saúde. Por mais esforço que se faça, a chance de que se tenha igual saúde e portanto que seja necessário acesso igualitário de saúde é quase nula.

A saúde, para os indivíduos é um estoque - a soma seu patrimônio genético e sua história de vida - gerando diferentes necessidades de saúde. Mas sob a ótica dos serviços, a saúde é um fluxo. Indivíduos com o mesmo perfil sócio econômico deveriam ser atendidos igualmente, como define o conceito de eqüidade horizontal, mas indivíduos com diferentes perfis sócio-econômicos devem ter acesso diferencial dado que os mais pobres, como define o conceito de eqüidade vertical, necessitariam mais. Assim o financiamento público à saúde seria distribuido, a cada um, segundo suas necessidades e de cada um segundo suas possibilidades. Esta frase, embora proferida por Karl Marx, é aceita por todas as formulações teóricas relacionadas ao atendimento de necessidades essenciais.

É este também o conceito sob o qual economistas liberais como Milton Friedman formularam a hipótese do imposto de renda negativo que é a base dos programas de transferência de renda como o Bolsa Família. Assim, como o mérito de receber uma transferência monetária do governo deve estar associado a carência familiar em ter acesso a um mínimo existencial, também em saúde o mérito de receber benefícios de um programa de saúde da família deve estar associado ao fato de que esta família não está coberta por outros programas como aqueles ofertados pelos Planos de Saúde. O Estado só promove a eqüidade quando trata igualmente os iguais e desigualmente os desiguais.

Para Amartya Sen, a justiça distributiva é o princípio que se utiliza para separar as desigualdades das iniqüidades. As iniqüidades em saúde são as diferenças que não somente são desnecessárias e evitáveis, tais como aquelas entre os pobres que tem e os que não tem acesso ao PSF, mas também as que se consideram injustas, tais como aquelas que permitem que uma pessoa que dispõe de um plano de saúde possa ter também o acesso gratuito ao PSF, enquanto outras que precisam e mereceriam estar cobertas pelo PSF não estão.

A eqüidade em saúde supõe, idealmente, que todos tenham uma oportunidade justa para alcançar seu potencial de saúde e que ninguém esteja impossibilitado de alcançar este potencial. Nos últimos anos a expansão dos programas de atenção básica, baseada nos princípios de igualdade, não foi suficiente para alcançar todos os pobres. Nos próximos anos, é necessário que os recursos disponíveis pelo SUS, que ainda são poucos, não sejam utilizados para duplicar coberturas ou prover níveis de atenção que não correspondam às necessidades. Só assim é possível alcançar maior eqüidade na cobertura destes programas.

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Nota

(i) Na verdade, a cobertura de atenção básica do PSF é teoricamente melhor estruturada que a dos planos de saúde, oferendo uma maior gama de serviços de promoção e prevenção. Mas na prática, o fato de ser registrado no PSF não significa que a população esteja de fato coberta e muitas coberturas são apenas nominais. Portanto, muitos avanços para estruturar melhor a atenção básica deveriam ser feitos no país. No PSF, buscando garantir a qualidade e a verificação de um conjunto mínimo de serviços e nos planos de saúde, buscando aumentar a oferta de serviços de promoção e prevenção, além do agendamento sistemático de exames para populações em risco.

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