por Marcelo Semer
É preciso tomar cuidado para não fazer da tragédia rotina
Quatro ou cinco páginas do jornal por dia falam sobre o mensalão. Outras tantas, da eleição municipal, mais ou menos como se ela fosse um apêndice do julgamento.
Enquanto isso, desastres contínuos apavoram a população mais vulnerável de São Paulo: incêndios seguidos se alastram em suas favelas. Não merecem mais do que o prestígio que a imagem da desgraça oferece: uma foto na capa.
Mas não seria o caso de se investigar seriamente para saber por que, afinal de contas, tantas favelas começaram a pegar fogo sem parar?
O tempo seco certamente não explica –nos últimos anos, as favelas vem sendo incendiadas nas quatro estações. Mais de duzentas em seis anos.
Difícil crer que comportamentos imprudentes ou desavenças pessoais começaram a explodir por todos os lados, como uma epidemia. E somente em São Paulo.
Alguns estudos têm relacionado os incêndios nas favelas à valorização de seu entorno, como se fossem uma espécie de terraplanagem para a especulação imobiliária. Seria deprimente se se constatasse verossímil.
O fato é que a questão está intrigando menos do que deveria. A imprensa, por exemplo, parece estar muito mais preocupada em produzir consequências de suas denúncias antigas, do que investigar fatos assim alarmantes.
O Ministério Público já anunciou interesse em enfrentar a questão –e é bom que se detenha nela. Seu papel é valioso não apenas por suspeitas de crime que envolvem os incêndios, como pelo esvaziamento das políticas públicas de controle dos desastres.
Afinal, que outra função mais relevante pode ter o poder público do que a de salvar vidas?
É preciso tomar cuidado para que não nos acostumemos à tragédia. Corre-se o risco de que com a repetição frequente dos incêndios, sem qualquer solução, o desastre se incorpore como rotina.
O fato de termos nos acostumado às favelas já é por si só um escândalo.
As precaríssimas condições de submoradia deixaram de nos constranger para ingressar no cotidiano de uma realidade aparentemente imutável, como se fosse ela mesmo fruto da natureza.
O trabalho escravo começa a despertar nossa atenção e causar repulsa. Mas a moradia servil já virou assunto batido.
O sonho de urbanização está cada vez mais remoto. As cidades têm prioridades diversas daquelas que uma reforma urbana impõe.
Preocupações estéticas ou higienistas guiam remoções, para que a pobreza explícita não atrapalhe os grandes eventos esportivos, nos quais alvenaria e cimento ficam por conta de construções mais importantes, como os estádios.
Mas daí a sermos omissos com as queimadas urbanas, de casas e de vidas, é algo simplesmente inaceitável.
Faz cinquenta anos que Jamelão imortalizou o barracão de zinco pendurado no morro. Mas quem hoje estaria em condições de repetir: Tua voz eu escuto/Não te esqueço um minuto?
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