por Kiko Nogueira(*) no Diário do Centro do Mundo
Uma homenagem ao verdadeiro autor da ideia por trás de um sucesso na literatura e no cinema.
E o Oscar foi para Moacyr Scliar. Ou deveria ter ido.
O filme As Aventuras de Pi, que ganhou quatro estatuetas, uma delas a de melhor diretor para Ang Lee, é adaptado do livro do canadense Yann Martel – que, por sua vez, se “inspirou” no livro Max e os Felinos, do escritor gaúcho Moacyr Scliar. Inspiração é bondade.
Em 2002, Martel agradeceu indiretamente o brasileiro pelo que chamou de “centelha de vida”. Explicou que não havia lido a obra, e sim uma resenha desfavorável de John Updike no New York Times Book Review.
A resenha não existia. Pego com a boca na botija, Martel deu uma de malandro: “Eu devo ter me confundido. Eu não queria ler aquilo. Por que estragar uma premissa brilhante com um escritor menor?”
O tamanho de Moacyr Scliar não vem ao caso. O plágio, sim. Na história de Scliar, Max, judeu alemão, é forçado a deixar seu país por causa dos nazistas. Ele embarca num navio em direção a Santos, com animais de um zoológico a bordo. Acontece um naufrágio e Max vai parar num bote com algumas provisões e uma caixa fechada. Quando ele a abre, lá está ele: um jaguar. Ele e o bicho são obrigados a conviver. É uma bela alegoria sobre morte, vida, violência e maturidade.
E é simplesmente a mesma ideia de As Aventuras de Pi, excetuando-se que aqui o menino é indiano e, ao invés de um jaguar, a fera é um tigre de Bengala.
O romance de Martel ganhou o prestigiado Booker Prize na época de seu lançamento (75 mil dólares) e mais três prêmios literários. Scliar e sua editora entraram com um processo, mas não foram adiante. Ele chegou a escrever uma declaração pública elegantíssima (leia abaixo). O canadense faturou um bom dinheiro com a adaptação para o cinema e está vendendo livros a mancheias. Só na Inglaterra, mais de 3 milhões de cópias; no mundo, calcula-se em 7 milhões. Tem quase 4 mil resenhas na Amazon. Foi traduzido para 41 línguas. Obama escreveu para Martel, dizendo que se tratava de “uma prova elegante de Deus e do poder de uma história bem contada”.
Faz tempo que o Brasil não tem um filme indicado (o que acho, francamente, merecido e, sinceramente, não faz a menor diferença). Mas Scliar nos vingou. Morto em 2011, ele não foi lembrado por ninguém — do plagiador ao diretor, ninguém.
Mas nós dizemos aqui: parabéns, Professor.
(Nesta semana, o poeta malaio Iryimman Thampi acusou de plágio a compositora Jayashri, autora da música tema de As Aventuras de Pi. O filme, diga-se, é bom. Mas, pelo jeito, a originalidade não é uma de suas virtudes).
“INTRODUÇÃO Moacyr Scliar
O Destino ainda bate à porta, claro, mas nesta época de comunicações instantâneas prefere o telefone. Na tarde de 30 de outubro de 2002, voltando para casa cansado de uma viagem, recebi uma ligação. Era uma jornalista do jornal O Globo, dando-me uma notícia que, a princípio, não entendi bem: parece que um escritor tinha ganho, na Europa, um prêmio importante com um livro baseado em um texto meu.
Minha primeira reação foi de estranheza: um escritor, e do chamado Primeiro Mundo, copiando um autor brasileiro? Copiando a mim? Ela se ofereceu para me dar mais detalhes, o que foi feito em telefonemas seguintes, e assim aos poucos fui mergulhando no que se revelaria, nos dias seguintes, um verdadeiro torvelinho, uma experiência pela qual eu nunca havia passado.
Sim, um escritor canadense chamado Yann Martel havia recebido, na Inglaterra, o prestigioso prêmio Booker, no valor de 55 mil libras esterlinas, conferido anualmente a autores do Common wealth britânico ou da República da Irlanda (entre outros: Ian McEwan, Michael Ondaatje, Kingsley Amis, J.M.Coetzee, Salman Rushdie, Iris Mur doch). Sim, ele dizia que havia se baseado em um livro meu, Max e os felinos, publicado no Brasil em 1981, pela L&PM (Porto Alegre), e traduzido poucos anos depois nos Estados Unidos como Max and the Cats (New York, Ballantine Books, 1990) e na França como Max et les Chats (Paris, Presses de la Renais sance, 1991). É uma pequena novela que escrevi com grande prazer – lembro-me de um fim de semana na serra gaúcha em que matraqueava animado a máquina de escrever, em todos os minutos em que não estava cuidando de meu filho, ainda pequeno.
Minha primeira reação não foi de contrariedade.
Ao contrário, de alguma forma senti-me envaidecido por ter alguém se entusiasmado pela idéia tanto quanto eu próprio me entusiasmara. Mas havia, na notícia, um componente desagradável e estranho, tão estranho quanto desagradável. Yann Martel não tinha, segundo suas declarações, lido a novela. Tomara conhecimento dela através de uma resenha do escritor John Updike para o New York Times, resenha desfavorável, segundo ele.
Esta afirmativa me perturbou. Max and the Cats não chegou a ser um best-seller, mas os artigos sobre o livro, que me haviam sido enviados pela editora, eram favoráveis – inclusive o doNew York Times, assinado por Herbert Mitgang. Teria Updike escrito uma outra resenha – para o mesmo jornal? Se era esse o caso, por que eu não a recebera? Será que os editores só mandavam resenhas favoráveis?
À afirmativa seguia-se um comentário de Martel. Uma pena, dizia ele, que uma idéia boa tivesse sido estragada por um escritor menor. Mas, em seguida, levantava uma outra hipótese: e se eu não fosse um escritor menor? E se Updike tivesse se enganado? De qualquer maneira a idéia principal do livro serviu-lhe de ponto de partida para sua obra The Life of Pi. E qual é essa idéia?
O Max Schmidt de meu livro é um jovem alemão que está fugindo do nazismo e que embarca para o Brasil. O navio em que viaja, um velho cargueiro, transporta também animais de um zoológico. Há um naufrágio, criminoso, mas Max salva-se em um escaler. E de repente sobe a bordo um sobrevivente inesperado e ameaçador: um jaguar. Começa então a segunda parte da novela, que tem como título O jaguar no escaler.
Esta, a idéia que motivou Martel. O seu personagem, Piscine Molitor Patel, Pi, é um menino hindu cujo pai é dono de um zoológico. A família emigra para o Canadá, levando os animais a bordo. Há, na segunda parte do livro, um naufrágio (que depois será considerado criminoso). Pi salva-se. No mesmo barco estão um tigre de Bengala, um orangotango e uma zebra. O tigre liquida os três e Pi fica à deriva com o felino por mais de duzentos dias.
O texto de Martel é diferente do texto de Max e os felinos. Mas o leitmotiv é, sim, o mesmo. E aí surge o embaraçoso termo: plágio.
Embaraçoso não para mim, devo dizer logo. Na verdade, e como disse antes, o fato de Martel ter usado a idéia não chegava a me incomodar. Incomodava-me a suposta resenha e também a maneira pela qual tomei conhecimento do livro. De fato, não fosse o prêmio, eu talvez nem ficasse sabendo da existência da obra. No lugar de Martel eu procuraria avisar o autor. Aliás, foi o que fiz, em outra circunstância. Meu livro A mulher que escreveu a Bíblia teve como ponto de partida uma hipótese levantada pelo famoso scholar norte-americano Harold Bloom segundo a qual uma parte do Antigo Testamento poderia ter sido escrita por uma mulher, à época do rei Salomão. Tratava-se, contudo, de um trabalho teórico. Mesmo assim, coloquei o trecho de Bloom como epígrafe do livro – que enviei a ele (nunca respondeu – nem sei se recebeu -, mas eu cumpri minha obrigação). Martel agiu de maneira diferente. No prefácio, em que agradece a muitas pessoas, atribui a “fagulha da vida” (“the spark of life“) que o motivou a mim. Mas não entra em detalhes, não fala em Max e os felinos.”
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