reproduzido no VioMundo
Proibição da interrupção de gestação durante a epidemia de zika constitui ato de tortura contra mulheres
Em fevereiro de 2016, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou que a epidemia de vírus zika e as desordens neurológicas a ele associadas constituem uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII).
O Brasil está no epicentro dessa crise de saúde pública global, com quase 10 mil casos de fetos e recém-nascidos notificados para a síndrome congênita do zika.
Em agosto de 2016, a Associação Nacional de Defensores Públicos (ANADEP) protocolou a ADI 5581 junto ao Supremo Tribunal Federal, com um conjunto de pedidos de enfrentamento à epidemia que incluem: acesso à informação de qualidade para mulheres em idade reprodutiva; ampliação da oferta de métodos contraceptivos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e distribuição de repelente para mulheres grávidas; direito de interrupção da gestação para mulheres grávidas infectadas pelo zika que estejam em sofrimento mental; acesso universal ao Benefício de Prestação Continuada (BPC) para crianças afetadas pelo zika; garantia de acesso e transporte gratuito de crianças e suas famílias para serviços de saúde.
11 ministros e ministras da Corte Suprema poderão que decidir que tipo de resposta o Estado brasileiro dará à epidemia. Neste conjunto especial de artigos, 11 juristas de todo o país argumentam porque o STF deve levar a ADI 5581 a sério. O artigo a seguir é parte do Manifesto 11 por 11, uma iniciativa do Justificando em parceria com a Anis – Instituto de Bioética.
Por que proibir a interrupção da gestação em tempos de epidemia pode se constituir em uma experiência de tortura às mulheres?
Quando falamos de tortura pensamos em pessoas privadas de liberdade sendo agredidas, interrogatório com choque elétrico, afogamento e pau de arara. Porém, esse não é o único grupo vulnerável à prática de tortura, nem a tortura se atém apenas a agressões físicas.
Torturar alguém significa causar dores e sofrimentos intensos, físicos ou mentais, de maneira intencional, com base em qualquer tipo de discriminação.
Essa definição de tortura feita pela Organização das Nações Unidas (ONU), adotada pelo Brasil e por todos os países do mundo, abrange, portanto, uma série de outras situações e ambientes, bastando compartilhar desses três elementos: o sofrimento intenso, a intencionalidade e o propósito discriminatório.
Nesta perspectiva, não há dúvidas de que a proibição da interrupção de gestação durante a epidemia de zika vírus constitui um ato de tortura contra as mulheres.
Um contexto epidêmico como o de zika vírus no Brasil, associado a uma série de riscos ao desenvolvimento do feto, muitas delas ainda desconhecidas, impõe às mulheres gestantes um sofrimento psíquico intenso: uma angústia e um medo avassaladores, decorrentes do alto grau de incerteza e desinformação sobre a extensão dos efeitos causados pela contaminação com o vírus sobre a saúde da mulher do feto.
Isso é capaz de tornar o exercício de direitos reprodutivos algo doloroso e cruel.
Intencionalmente impor a continuidade da gestação a essas mulheres, através da criminalização do aborto e da ausência de políticas públicas de atenção integral à saúde, ignorando e aquiescendo com o intenso sofrimento psíquico a que estão submetidas, é ato de violação de seus direitos humanos.
Aqui não basta ao Estado não agir; há um dever de prevenir a tortura e tratos cruéis que só se concretiza com a permissão da interrupção de gravidez e a adoção de políticas integrais de saúde capazes de amenizar o seu sofrimento.
Ao ignorar o intenso sofrimento psíquico a que estas mulheres estão submetidas, mantendo a proibição de interrupção da gravidez através da criminalização do aborto e da ausência de políticas públicas pertinentes, o Estado não só age intencionalmente na imposição de tortura como o faz de forma a afetar um grupo muito específico de mulheres: pobres, com pouca educação formal, negras e nordestinas do sertão e da cidade.
Essas são as mulheres que sofrem com maior intensidade a epidemia de zika vírus. Moradoras de regiões com pouco ou nenhum saneamento básico, estão sujeitas à contaminação pelo vírus no seu dia-a-dia.
Pobres e sem instrução, não possuem alternativas para se prevenir à contaminação: não podem se mudar ou viajar e são dependentes dos serviços públicos de saúde.
Essas mulheres sofrem de forma desproporcional não só as consequências da epidemia de zika vírus e, quando gestantes, da síndrome congênita, mas também da proibição da interrupção da gravidez.
São mais vulneráveis a contraírem o zika vírus, a serem obrigadas a levar a gestação até o seu término e a serem criminalizadas caso a interrompam.
Esse impacto desproporcional é uma forma de discriminação dessas mulheres pois impõe um tratamento desigual formal e materialmente.
Submetidas intencionalmente pelo Estado omisso a um extremo sofrimento mental, essas mulheres pobres vivem uma experiência de tortura na gestação.
A ONU, por suas comissões e relatores especiais, já afirmou que a negação do direito ao aborto e de atenção pós-aborto em determinados contextos, como epidemia, sujeitando mulheres a processos de criminalização, coloca-as em situação de intenso sofrimento, podendo caracterizar tortura e tratos cruéis.
A ADI 5581, que pede a adoção de medidas de proteção à saúde das mulheres e de crianças nesse contexto epidêmico de zika vírus, é a oportunidade para que o Supremo Tribunal Federal reconheça a obrigação do Brasil em prevenir e combater a prática dessa tortura.
*Eloísa Machado de Almeida é advogada, mestra em ciências sociais pela PUC/SP e doutora em direitos humanos pela USP. É professora da FGV Direito SP e coordenadora do Supremo em Pauta. É Conselheira do Instituto Pro Bono e do projeto Prioridade Absoluta do Instituto Alana e da Comissão de Direito Constitucional da OAB/SP.
Nenhum comentário:
Postar um comentário