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domingo, 7 de outubro de 2018

O candidato do fim do mundo

Crédito: Marcelo Camargo / Agência Brasil

Ameaça à democracia marca campanha do líder das pesquisas Jair Bolsonaro



Esta não é uma análise imparcial. Mas é uma análise objetiva, baseada em fatos. Temos lado; não partido. Preferíamos ver qualquer outro candidato no segundo turno. Não precisamos “acreditar” que as propostas de Jair Bolsonaro (PSL) são uma ameaça para a democracia e para uma ampla parcela da sociedade brasileira – as ideias do candidato estão escritas e gravadas. Sob o manto da “união do Brasil” – já bastante gasto, posto que usado por Michel Temer (MDB) – Bolsonaro descortina um horizonte de rupturas com princípios civilizatórios.

A possibilidade concreta de que este projeto político vença as eleições, demonstrada a cada nova pesquisa de intenção de votos desde o início da semana, é preocupante. E, a não muito tempo atrás, era impensável. Mas as eleições de 2018 parecem ser a esquina em que, finalmente, uma metade do Brasil encontra com a outra. É contraproducente fechar os olhos na tentativa de conjurar outra realidade. Teremos de lidar com este presente, esta divisão e estes fantasmas, qualquer que seja o futuro.


A 36 horas da votação, a situação é a seguinte: segundo o Datafolha, o capitão do Exército reformado tem 39% dos votos válidos. Isto é, se excluirmos os eleitores que declaram votar nulo e branco, o projeto de seus apoiadores de “liquidar a fatura” no primeiro turno deixou de ser um delírio e passou a depender do quanto esses últimos momentos de campanha serão capazes de virar votos de outros candidatos de direita e centro-direita a favor de Bolsonaro. E de quantas pessoas vão comparecer às seções de votação.

O filmete das pesquisas está assim: de acordo com o Ibope, divulgado quarta, ele tinha 38% dos votos válidos. Na terça, quando a imprensa ainda não dava atenção para os votos válidos, mas para os números totais, o Datafolha contabilizou 32%. Na segunda, o Ibope havia cravado 31% – um crescimento de três pontos percentuais em relação à pesquisa Datafolha feita na sexta-feira anterior aos protestos contra o candidato.

O movimento #EleNão foi das redes para as ruas, fruto de organização espontânea de mulheres de todo o país contra o candidato. A página do grupo Mulheres contra Bolsonaro alcançou um milhão de seguidores em poucos dias. Bateu dois milhões pouco depois. Em seguida, três. Agora, são quase quatro milhões. Foi vítima de apoiadores do candidato, que a hackearam. Também o Outras Palavras foi alvo de campanha semelhante, sendo atacado por robôs depois que um texto analítico que falava da possibilidade de um primeiro turno sem Bolsonaro ser publicado na sexta (28).

No sábado, as manifestações aconteceram em dezenas de cidades brasileiras, capitais, municípios de médio porte e até no interior do país. Também em outros países houve atos contra Bolsonaro. Em São Paulo e no Rio de Janeiro, atraíram centenas de milhares de pessoas. Não receberam a devida atenção das redes de televisão. (O que, como se sabe, não é casual: mostrar o povo na rua só interessa em circunstâncias mui específicas.) Propagaram-se notícias falsas afirmando que foram forjadas as multidões. Que os atos não aconteceram.

“Fatos” alternativos

Jair Bolsonaro é, com frequência, comparado ao presidente dos Estados Unidos Donald Trump. O candidato já declarou que gosta da comparação. E quer copiar medidas adotadas por Trump, como a redução da carga tributária para os mais ricos.

Ficou famosa a entrevista dada em janeiro do ano passado por uma das pessoas mais próximas de Trump, a assessora Kellyanne Conway, em que ela afirma que o então porta-voz do presidente (Sean Spicer) em uma coletiva de imprensa ofereceu aos jornalistas “fatos alternativos”. Em bom inglês, em bom português: mentiras úteis ao chefe.

O programa de governo de Bolsonaro é repleto destes fatos alternativos, e sua campanha claramente se lambuza deles. O documento protocolado no Tribunal Superior Eleitoral propaga uma enorme fake news ao ligar o Foro de São Paulo a fatos disparatados. O Foro é uma organização, fundada em 1990 pelo PT e pelo partido comunista cubano, que reúne legendas de esquerda e movimentos sociais da América Latina e do Caribe. Mas, como se sabe, entrou para a mitologia do pensamento conservador brasileiro como algo poderoso, uma espécie de URSAL. Pois no programa de governo de Bolsonaro, as coisas são dividas entre antes e depois do Foro. As coisas ruins, obviamente, como os homicídios.

Há também contradições no documento (que se espelham no candidato). A capa anuncia um “caminho da prosperidade” “constitucional, eficiente e fraterno” – e, lá também, está estampado um salmo bíblico. O lema da campanha está longe de emular a laicidade do Estado garantida pela Constituição Cidadã, que completa 30 anos hoje. “Brasil acima de tudo; Deus acima de todos” é uma espécie de grito de guerra que se transformou até em tema musical em um vídeo em que dezenas de pessoas dançam coreografadas em apoio ao capitão reformado do Exército.

Do hospital, Bolsonaro participou de transmissões ao vivo nas redes sociais e concedeu uma entrevista de 45 minutos ao apresentador Datena em que afirmou que “não existe outra maneira” de o PT derrotá-lo nas urnas “a não ser fraude”. “Eu não aceito o resultado das eleições diferente da minha eleição”, repetiu minutos mais tarde da primeira declaração. “Isso é uma posição fechada?”, perguntou o jornalista. “É”, respondeu Bolsonaro. Depois, ele disse que foi mal interpretado.

Na mesma ocasião, o candidato afirmou que a União das Nações Sul-Americanas, a Unasul, é o “nome fantasia do Foro de São Paulo”. Não se pode afirmar que Bolsonaro acredita em uma teoria da conspiração. Todos esses “fatos alternativos” servem para modelar a realidade de acordo com sua vontade. E, ao que parece, este mundo sem arestas ou contradições, em que se afirma num documento protocolado num tribunal superior que “nos últimos 30 anos o marxismo cultural e suas derivações como o gramscismo (sic.) se uniu às oligarquias corruptas para minar os valores da Nação e da família brasileira” é palatável para uma grande parcela da população brasileira.

O mais recente exemplo foi dado ontem. Primeiro, o médico confirmou para a imprensa que o candidato estava liberado para ir aos debates na televisão. Depois, Bolsonaro divulgou que não tinha autorização da equipe médica para participar. Isso não o impediu de gravar com a Record uma entrevista que foi ao ar no mesmo horário do debate promovido pela TV Globo. O bispo Edir Macedo declarou apoio ao candidato. A rede de televisão reafirmou o apoio ao não fazer uma única pergunta incômoda a Bolsonaro. O entrevistador sequer questionou o candidato quando ele repetiu que estaria provado que Adélio Bispo de Oliveira, autor do atentado contra ele em Juiz de Fora, teria um cúmplice em Brasília, tentando forjar um álibi ao dar entrada no Congresso Nacional. Já ficou provado, e foi amplamente veiculado, que foi um funcionário da portaria do Congresso que fez o registro de entrada sem querer, após a notícia da facada, quando tentava buscar pelo nome de Adélio nos registros da Casa.

O candidato diz ser vítima de falsos rótulos e nega ser machista, racista e homofóbico. Repete, com frequência, que não há uma declaração ou áudio seus com declarações nesse sentido – o que, como se sabe, é mentira, diversas vezes contestada por jornalistas em entrevistas feitas ao vivo.

Contudo, na mais atípica das campanhas eleitorais, os fatos parecem não ter importância. Nunca houve tantos veículos jornalísticos no país. A cobertura das propostas dos candidatos foi ampla. Houve diversas sabatinas, entrevistas, debates. Não só com os candidatos à Presidência, mas com seus vices e com membros de suas equipes. E também checagens das declarações e propostas por agências especializadas em ir aos bancos de dados e comprovar números, afirmações. Mesmo assim, basta sair na rua para constatar que nada disso teve força para superar as notícias falsas propagadas por WhatsApp. As pessoas acreditam no que querem acreditar.

E a saúde?

Para a saúde, o programa de governo é vago. Assim como o de concorrentes. Mas, diferente deles, Bolsonaro não buscou esclarecer suas propostas em eventos promovidos justamente para que as candidaturas debatessem com mais profundidade suas ideias para a área.

Dessa forma, não enviou ninguém para a edição do Roda Viva especial sobre saúde (Ciro, Alckmin, Marina e Álvaro Dias enviaram representantes; o PT não foi representado porque o nome indicado pelo partido, o ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha, também é candidato a deputado federal nestas eleições, e sua participação foi barrada pela TV Cultura).

Tampouco indicou um nome para o debate da Fiesp – Paulo Skaf, aliás, declararia apoio a sua candidatura tempos depois.

O documento dedica quatro páginas à saúde (ou slides, qualquer semelhança com uma apresentação de PowerPoint não parece ser mera coincidência). A premissa é: “a saúde deveria ser muito melhor com os recursos que o Brasil já gasta!” E mais: “é possível fazer MUITO [em caixa alta mesmo] mais com os atuais recursos!”

Dito isso, o programa promete fazer o que chama de “credenciamento universal” dos médicos (mas aparentemente não só destes profissionais): “Toda a força de trabalho da saúde poderá ser utilizada pelo SUS, garantindo acesso e evitando a judicialização. Isso permitirá às pessoas maior poder de escolha, compartilhando esforços da área pública com o setor privado”. E completa: “Todo médico brasileiro poderá atender a qualquer plano de saúde.” Para alguém que diz estar convertido ao liberalismo econômico, Bolsonaro parece querer obrigar os médicos a fazerem parte da base das operadoras de planos e seguros de saúde. E se a afirmação não é uma imposição mas uma possibilidade, se prova inócua, já que os médicos podem atender, se quiserem, com a intermediação dessas empresas.

Mas além do grau de confusão, o que chama atenção nesta proposta é a incoerência e o grau de retrocesso que representa para o Sistema Único de Saúde. Incoerente porque se o orçamento da saúde não será ampliado, como o candidato pretende bancar o pagamento de consultas e procedimentos particulares? Só se pode constatar que isso será feito às custas da rede pública, fechando serviços. E, se for isso mesmo, qual é a diferença dessa ‘novidade’ para o que existia antes do SUS, na época do Instituto de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps)? Com uma diferença: o Inamps bancava o atendimento na rede particular para quem tivesse carteira de trabalho formal – não para todos os habitantes do país, como o SUS. Como bancar atendimento particular para todos? A conta não fecha. Mas talvez não seja para fechar mesmo, já que o projeto econômico de Bolsonaro é claramente direcionado a um público-alvo: a classe média e o empresariado.

Outra proposta que não combina com falta de dinheiro é a criação de uma carreira de Estado para médicos. Se for nos moldes defendidos pelas entidades da categoria, imitando o Judiciário, há de custar caro. A comparação que Bolsonaro prefere, contudo, não fica atrás em termos de investimento público: ele explicou essa proposta de acordo com sua experiência como militar. Esses médicos atenderiam “áreas remotas e carentes do Brasil”, segundo o programa de governo. Perguntado na GloboNews sobre a proposta, Bolsonaro explicou assim:

“Nos tínhamos no passado o Projeto Rondon. Eu servi no Mato Grosso do Sul por três anos. Era comum a gente receber leva de 15 médicos pra prestar o serviço militar obrigatório de um ano. E era comum pelo menos um médico casava-se (sic.) na cidade. Era tudo homem, não ia mulher. Casava-se na cidade e foi interiorizado dessa maneira. Com a carreira de Estado você vai botar no interior de Pernambuco – eu não conheço – (…) ele pode querer ficar lá, ou pedir demissão porque contraiu matrimônio e vai montar seu escritório lá. Isso pode acontecer (…) Essa interiorização vem por aí”.

Há ainda mais uma proposta que não faz sentido sem mais recursos para o SUS: trata-se da inclusão de profissionais de educação física na Estratégia Saúde da Família.

Bolsonaro quer ainda “treinar” agentes comunitários de saúde para se tornarem “técnicos de saúde preventiva”. O curso técnico para os agentes já existe há muito tempo – mas nunca foi implementado no país inteiro por resistência dos prefeitos que sempre argumentaram que a elevação da escolaridade da categoria e sua qualificação representariam mais despesas para os municípios. Só em alguns lugares, e com o apoio dos governadores, como no Ceará e no Acre, o curso técnico foi oferecido para os agentes. Mas na proposta, não fica claro se o objetivo é criar outro curso, de “técnico em saúde preventiva” que não existe. A política atual, do governo Michel Temer, é que esses agentes, e também os agentes de combate às endemias, façam um curso técnico de enfermagem. A proposta agrada prefeitos e divide os agentes. Bolsonaro já afirmou que, se eleito, cogita nomear para o Ministério da Saúde o deputado federal Mandetta (DEM-MS), um nome bastante ligado a esses profissionais.

Além disso, o programa de governo afirma que “nossos irmãos cubanos” serão “libertados” do programa Mais Médicos nos moldes em que funciona hoje. E volta a uma velha polêmica, ao se alinhar com a bandeira eterna das entidades médicas brasileiras, de que todos os profissionais formados no exterior precisam ser aprovados pelo exame Revalida, para ativar seus diplomas por aqui. Os índices de aprovação sempre foram baixos, e sempre se argumentou que o nível do exame é altíssimo justamente para assegurar uma boa reserva de mercado para os médicos brasileiros no país.

Além disso, Bolsonaro quer criar, como vários outros candidatos nessas eleições, o prontuário eletrônico nacional. E quer que as gestantes façam consultas com dentistas. Aliás, esse segundo ponto parece ser uma fixação. O candidato já falou disso em várias ocasiões, e basicamente esta é sua proposta para evitar partos prematuros. O problema é a incidência de cáries não é, nem de longe, um dos principais fatores de risco para prematuridade. Por outro lado, fatores já bem documentados são tabagismo, baixo nível socioeconômico, nutrição inadequada, infecções urinárias e malformações fetais. Mas esses problemas não estão entre as preocupações de Bolsonaro.

Um grande calcanhar de Aquiles é a lembrança de quando defendeu em um programa de televisão que mulheres não devem ganhar o mesmo salário que homens porque engravidam e isso, na opinião de Bolsonaro, prejudica o empregador, porque a trabalhadora afastada perde o ritmo. Ele nega que disse isso, ou tenta apontar que os adversários do PT e do PSDB que estiveram no poder federal nada fizeram para mudar essa realidade (o que é um bom argumento).

Sempre que pode, o candidato argumenta que defende as mulheres com base em duas propostas absolutamente retrógradas e perigosas que estão colocadas no âmbito da segurança pública, mas terão impactos na saúde. Bolsonaro quer implementar a “castração química” para homens acusados de estupro. E usa sua plataforma de liberalização das armas para afirmar que as mulheres se sentirão mais seguras se puderem ter um revólver dentro de casa, ou até mesmo no carro.

Ele usa números de homicídios de países onde as armas são liberadas – Canadá, Estados Unidos, etc. – onde não existe polícia militar, para ficar num argumento, para afirmar que por aqui os assassinatos vão diminuir se as pessoas puderem se armar. Outra proposta com alto potencial de fazer explodir os homicídios no país é uma das que ele mais gosta: aprovar o chamado “excludente de ilicitude” para policiais e agentes de segurança, uma espécie de licença para matar. Bolsonaro também quer que civis que matem sob a justificativa de defesa da própria vida ou de terceiros (ou da propriedade privada) não sejam processados criminalmente.

Fogo amigo

Falamos aqui de algumas das propostas de Jair Bolsonaro. Mas, no hospital, ele lidou com os efeitos colaterais das trapalhadas de sua equipe. O candidato a vice, general Hamilton Mourão, protagonizou a maior parte delas. Mas o “Posto Ipiranga” Paulo Guedes também aprontou das suas, ao defender uma bandeira altamente impopular (e não essencialmente ruim) – a volta da CPMF – e propor uma mudança no Imposto de Renda, de modo que todos os que recebem mais do que cinco salários mínimos sejam tributados com a mesma alíquota de 20%.

Já Mourão primeiro entrou na Justiça para participar dos debates na televisão no lugar de Bolsonaro – sem costurar isso com o cabeça de chapa e seus representantes diretos. Depois, declarou que o 13º salário é uma “jabuticaba” brasileira. E que pessoas criadas por avós e mães, sem avôs e pais, são criminosos em potencial. Depois ele explicou: são só as pessoas que moram em comunidades pobres que correm esse risco. Não podemos esquecer da declaração de que índios são “indolentes” e negros “preguiçosos”. Nem que a Constituição de 1988 foi um “erro” e uma nova Carta precisa ser feita por “notáveis” – gente não eleita pela população. Segundo Bolsonaro declarou na entrevista a Datena, o vice foi instruído a ficar quieto e se afastar dos holofotes.

Mas Mourão também afirmou que “heróis matam”, frase disparada na entrevista à GloboNews sobre o coronel Carlos Brilhante Ustra, notório torturador da ditadura civil-militar – figura que Bolsonaro tem como ídolo, cuja biografia repousa em sua cabeceira, como declarou também em entrevista ao canal pago. A chapa está de acordo em uma coisa: para eles, a ditadura foi uma democracia. Não espanta que muitos temam que, caso sejam vitoriosos, eles transformem rapidamente a democracia numa ditadura.

* Maíra Mathias é jornalista e editora do Outra Saúde.

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