LIGIA BAHIA
Durante os últimos meses, o sistema de saúde colombiano, tido como exemplar pelos adeptos da privatização, foi consumido na fogueira do rentismo, inépcia e corrupção. As cinzas do incêndio da sofisticada construção econômico-intelectual público-privada das empresas vizinhas prestadoras de serviços de saúde não foram avistadas no Brasil. Mas as repercussões internacionais negativas das noticias sobre o denominado carrossel - desfalque envolvendo entidades privadas promotoras da saúde - foram proporcionais às imensas promessas de eficiência e sustentabilidade dos adeptos de sistemas de saúde orientados pelo mercado.
Por aqui, pouco ou nada se comentou sobre o caos assistencial fronteiriço. Os diversos caudatários dessas mesmas ideias e negócios em solo pátrio continuaram tocando suas empresas para frente, fingindo ignorar os fracassos da aplicação do fundamentalismo utilitarista. Como para uma parte significativa dos brasileiros, a Colômbia, embora geograficamente próxima, dista muito longe das usuais comparações que auxiliam a situar o nosso cotidiano no mundo, é importante lembrar que as acusações que levaram ao banco dos réus empresas de saúde latino-americanas - práticas comerciais restritivas por meio de negação de coberturas - são similares àquelas que justificaram a reforma do sistema de saúde nos EUA.
Embora não se recomende realizar de um "de/para" sobre realidades tão distintas, não se deve menosprezar a presença de traços comuns no empresariamento da saúde. A crença que só o mercado salva e a outorga das ações de saúde a organizações que lucram quando não atendem constituíram-se como pedras angulares na arquitetura de sistemas de saúde na Colômbia e EUA. Foi esse o modelo que venceu uma disputa internacional acerca das evidências sobre a efetividade dos sistemas de saúde. Em 2000, no auge da onda privatizante, a Colômbia com seu sistema privado-público obteve o primeiro lugar no World Health Report, e o Brasil, com o SUS, amargou a humilhante última colocação. Nesse meio tempo, a desregulamentação dos direitos e a exposição de um conjunto de indivíduos às variações da lógica do mercado revelou-se perversa e inadequada. Houve uma virada publicizante que elevou o SUS à categoria de estrela-guia para os países em desenvolvimento. Essas rápidas guinadas no panorama mundial ainda não foram completamente absorvidas pelas instituições nacionais. Não é por acaso que o ex-presidente FHC, que governou o país nesse contexto, declarou, em recente entrevista, que o SUS foi "feito" durante seu mandato.
Agora que o tratamento prescrito por ideólogos privatizantes e empresários revelou-se mais debilitante do que a patologia é hora de usar o mesmo cartão de visitas que exibe o SUS para estrangeiros para rever as políticas de saúde no Brasil. Com a melhoria da renda e ascensão dos segmentos C e D empreendimentos de saúde se expandiram e diversificaram. Há apostas sobre a extensão de cobertura de planos privados para 60% da população. Para preparar esse cenário, no qual caberia ao SUS o papel precípuo de atender os mais pobres dos pobres e propiciar as ações negadas pelos planos e seguros, abriu-se temporada de aquisições e abertura de ações e a comercialização de contratos com garantias exíguas. Ambas as medidas destoam claramente da legislação. Os próximos passos, já anunciados, o ajuste do risco para cada individuo, que se desdobra na maior cobrança para quem é doente ou tem probabilidade de vir a ser, e capitalizar os fundos da saúde estão na base de estratégias que revelaram um alto potencial disruptivo.
Sem um debate corajoso e transparente sobre o nosso sistema de saúde, a expansão tutelada do mercado corre frouxa. As suspeitas não explicitadas sobre o SUS fermentam a privatização. Não se diz abertamente, mas as teses sobre a relevância da entrega do serviço ao destinatário final, independentemente da origem do prestador, ressoam em alto e bom som entre os que vêem mais defeitos do que qualidades na concepção do SUS. Para puxar o freio de arrumação na saúde essas polêmicas terão que vir a público. No longo prelúdio para aprovação da regulamentação da EC 29 pelo Congresso Nacional as condições essenciais para expandir e melhorar a qualidade do SUSficaram bem definidas. Um sistema de saúde socialmente estável e politicamente sustentável requer que o aporte de mais recursos financeiros se combine com prioridades assentadas em critérios epidemiológicos, continuidade administrativa; ocupação de cargos públicos por agentes que não defendam interesses empresariais e funcionários públicos dedicados.
Quem fez ou não o SUS é um acerto de contas com o passado. Mas a insistência em adequar o sistema de saúde às necessidades empresariais, e não aos objetivos de construir pontes concretas entre desenvolvimento, democracia e bem estar, será cobrada no futuro. Se não forem fechadas as portas giratórias pelas quais a entrada dos subsídios públicos se converte na saída de renda para os bancos de investimentos, alguns poderão passar para a história como responsáveis pela detonação do SUS e retorno ao ponto de partida que pretendemos superar com a Constituição de 1988.
LIGIA BAHIA é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: ligiabahia55@gmail.com.
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