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sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Sobre a Nestlé e a Sociedade Brasileira de Pediatria

 
Ana Paula Caldas no FB


Desde que fiz residência médica, lá se vão 20 anos, eu achava estranho a Nestlè ser a patrocinadora oficial da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Em termos práticos, isso significa que todos os congressos, aulas, cursos da SBP são financiados pela Nestlè.

Na época e mesmo hoje, muitos dos meus colegas acham que é exagero meu. Afinal, os pediatras todos sabem que o aleitamento materno é melhor para o bebê, e nenhum pediatra vai prescrever fórmula porque ganhou amostras de farinha láctea e bichinhos de pelúcia do patrocinador.

Voltando um pouco no tempo, por volta da década de 1950, a Nestlè chegou ao Brasil vendendo a ideia que seu leite era melhor e mais nutritivo que o leite materno. Na década de 50/60 eram comuns os concursos de "robustez infantil", onde a mãe mandava uma fotografia do bebê gorducho em frente a uma pirâmide de latas de leite Ninho (essa eu vi pessoalmente, ninguém me contou). Rapidamente a amamentação virou "coisa de pobre". Só amamentava quem não podia comprar leite Ninho.
Acontecia também de os representantes da marca irem às maternidades e distribuírem amostras grátis de seus leites para as famílias, médicos e enfermeiros.
Na África, isso teve um efeito devastador e virou um grande escândalo: as mães recebiam amostras grátis de fórmula infantil, desmamavam seus filhos e depois não tinham condições de comprar mais leite, ou de higienizar mamadeiras. Centenas de crianças morreram de desnutrição e gastrenterite em consequência da "generosidade"da Nestlè.
Qualquer semelhança com a estratégia usada pelos traficantes de drogas não é coincidência.

Nos fim dos anos 80, o Ministério da Saúde passou a proibir a distribuição de fórmulas lácteas e correlatos em instituições de saúde em todo o Brasil. Isso foi um golpe para a indústria de fórmulas lácteas, que passou a focar mais fortemente no marketing junto aos pediatras.

Atualmente, sabemos que no Brasil, apenas cerca de 40% dos bebês de 0-6 meses estão em aleitamento materno exclusivo,sendo que quase 20% dos bebês que frequentam o pediatra recebem algum complemento já no 1o mês de vida e 50% das crianças entre 6 meses e 2 anos consomem fórmulas lácteas ou farinhas.

Baseados nestes dados podemos supor que nossos pediatras não estimulam o aleitamento materno e pior, não entendem nada de amamentação.
Na minha experiência pessoal com o ativismo, não tem um dia que eu não recebo emails de mães orientadas pelo pediatra a introduzir fórmulas para seus filhos, por variados motivos, a maioria facilmente contornáveis se o pediatra apenas se dispusesse a observar a mamada e soubesse o que fazer com o que está vendo.

Mas pra quê perder tempo com amamentação, se nossa patrocinadora Nestlè tem leites tão bem desenhados, cheios de Omegas e L-puffas, enfim , "quase iguais"ao leite materno, não é mesmo?
Claro que o pediatra não prescreve a fórmula porque ganhou um ursinho fofo no congresso. Ele prescreve porque a indústria que nos patrocina o leva a crer que seu leite é quase tão bom quanto o materno. Isso chama-se propaganda subliminar.

Imaginem a Souza Cruz (marca de cigarro) patrocinando os pneumologistas? não é bizarro? pois é.

Eu já dizia há 20 anos e continuo dizendo agora: a parceria da SBP com a Nestlè, é imoral e deveria envergonhar a todos os pediatras.
 
Print screen da página da SBP na internet
 

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