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quarta-feira, 3 de junho de 2015

O médico super sincero

O cirurgião Atul Gawande revela como milhões de americanos são submetidos a exames, cirurgias e tratamentos que não trazem nenhum benefício. Alguma semelhança com o Brasil?

Cristiane Segatto na Época


Sou fã de carteirinha da categoria dos médicos escritores. Aqueles que não só têm a coragem de apontar as distorções da medicina e do mercado da saúde como ainda demonstram o talento dos grandes contadores de história. No Brasil, eles são raros. Drauzio Varella é o mais produtivo, mas o país carece de muitos outros. Quando teremos uma safra variada como a americana?

Só a revista The New Yorker conta com dois autores de primeira: o cirurgião Atul Gawande e o clínico geral Jerome Groopman. O oncologista Siddhartha Mukherjee ganhou o Prêmio Pulitzer com o monumental O imperador de todos os males – uma biografia do câncer. O cirurgião Martin Makary comprou briga ao desvendar aquilo que os hospitais não contam.

O médico e escritor Atul Gawande (Foto: Tim Llewellyn/divulgação)

A decisão de abraçar a carreira paralela (seja o jornalismo ou a literatura) não é indolor. Quase sempre envolve enfrentar o corporativismo médico e as maledicências que o mercado trata de espalhar assim que eles começam a fazer sucesso. “Fulano não é um médico tão bom assim”; “Se preocupa mais em escrever do que em estudar” e outros venenos que, felizmente, não colam.

O público agradece a existência deles e pede mais. Livros assinados por médicos brasileiros (em geral, inteiramente produzidos por ghost writers) existem aos montes. Servem para dar prestígio e certo verniz intelectual aos “autores”. Não têm nada a ver com a categoria a qual me refiro.

Quero ler mais textos produzidos por profissionais que vivam o cotidiano da medicina brasileira e sejam capazes de relatá-lo com autocrítica madura, sinceridade, clareza e – se não for pedir muito – qualidade jornalística ou literária.

Se eles existem no Exterior, se existe Drauzio Varella no Brasil, por que não podem surgir outros? Quem sabe algum talento adormecido possa se inspirar no exemplo do cirurgião Atul Gawande. Filho de imigrantes indianos, nascido em Nova York e criado numa cidadezinha do interior do Estado de Ohio, ele se tornou conhecido por falar abertamente sobre erros médicos – tema ainda obscuro no Brasil.

O último livro de Gawande (Being Mortal) alcançou o primeiro lugar na lista dos mais vendidos do jornal The New York Times. É um relato honesto sobre a forma como os médicos e as famílias tendem a alimentar falsas esperanças e a adotar tratamentos inúteis diante de mortes inevitáveis. Atitudes que podem encurtar a vida em vez de trazer conforto. Na próxima semana, o livro será lançado no Brasil, com o título Mortais (264 páginas, Editora Objetiva).

O desperdício de recursos sem melhoria da qualidade de vida é outro de seus temas prediletos. No artigo mais recente, publicado há algumas semanas na The New Yorker, ele trata da epidemia de tratamentos desnecessários – uma realidade comum também na medicina privada brasileira. Gawande demonstra como milhões de pessoas são submetidas anualmente a exames, cirurgias e tratamentos que não trazem nenhum benefício – apesar de custarem bilhões de dólares.

O fenômeno é causado por uma sucessão de distorções. A insegurança ou o interesse financeiro dos médicos produz pedidos de exames em excesso (o chamado overtesting, em inglês). Os testes revelam uma enormidade de características que fogem do padrão (overdiagnosis), mas que não necessariamente produziriam riscos se permanecessem ignoradas. Mesmo sem representar riscos, pelo sim, pelo não, as diferenças são tratadas (overtreatment). O dano ocorre quando o risco da intervenção supera algum possível benefício.

Um dos exemplos citados pelo autor, especialista em cirurgia de tireoide, é o da mulher de 50 anos que descobriu um nódulo nessa glândula, logo removido por outro médico. Embora a biópsia tenha revelado que o nódulo era benigno, o patologista encontrou um “microcarcinoma” de cinco milímetros próximo a ele.

Ao ouvir a palavra (sinônimo de câncer), a paciente ficou apavorada. Quem não ficaria? Gawande esclarece que mais de um terço da população tem esses tumores minúsculos na glândula tireoide. É muita gente! No entanto, menos de uma pessoa a cada centenas de milhares morrem disso a cada ano.

Raros tumores como o daquela paciente desenvolvem a capacidade de se comportar como um câncer perigoso e invasivo. “As diretrizes médicas recomendam que não haja tratamento adicional quando eles são descobertos”, afirma.

O médico que atendeu a paciente antes de Gawande decidiu submetê-la a uma série de ultrassonografias ao longo de meses para monitorar o que havia restado da tireoide. Quando uma das imagens revelou o nódulo de cinco milímetros, ele recomendou que a glândula fosse extirpada.

No dia da operação, o médico teve um imprevisto. A paciente procurou Gawande para que ele o substituísse. Queria voltar para casa sem a tireoide e com o problema resolvido.O que fez o autor? Recusou-se a operá-la e explicou que os riscos do procedimento superavam qualquer benefício.

A mulher poderia sofrer paralisia das cordas vocais ou sangramento grave. Sem a glândula, precisaria tomar pílulas de reposição hormonal para o resto da vida. Gawande recomendou que o tamanho do nódulo fosse acompanhado uma vez ao ano e que a cirurgia fosse feita apenas se houvesse um crescimento significativo.

Quais as razões de histórias impressionantes e corriqueiras como essa? A relação entre os médicos e os pacientes é marcada por um jogo de forças desigual. O conhecimento confere poder aos médicos. Os pacientes confiam nas indicações que recebem, mas a realidade demonstra que eles não deveriam fazer isso de forma passiva. Precisam se informar cada vez mais, discutir as opções com os médicos e entender que todo e qualquer procedimento envolve riscos.

A sinceridade é uma das maiores qualidades de Gawande. “Nós, os médicos, podemos recomendar tratamentos de pouco ou nenhum valor porque isso aumenta os nossos ganhos. Ou porque esse é o nosso hábito. Ou porque nós, genuinamente, mas incorretamente acreditamos nas nossas recomendações”.

Autores como ele são essenciais porque examinam feridas, informam, transformam confusão em clareza e conduzem o leitor com competência – a mesma missão do bom jornalismo de saúde.

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