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quarta-feira, 9 de março de 2016

A quebra do Estado Laico e o drama da saúde pública no Rio de Janeiro em tempos de Zika Virus


* Ivanilda Figueiredo


A afirmação e a realização dos direitos das mulheres caminham cambaleantes no Brasil. Atentados a esses direitos andam particularmente visíveis no Congresso Nacional, com a supressão da expressão “gênero” até mesmo das atividades estratégicas do ministério dedicado às mulheres. Menos visíveis, no entanto, apesar de igualmente danosas, são leis aprovadas no plano estadual e municipal que trazem consigo novas modalidades de restrição de garantias.

Recentemente realizamos missão no Rio de Janeiro para verificar denúncias de violação de direitos das mulheres e de populações vulnerabilizadas em razão da aplicação da Lei Estadual 6998/15, que trata da objeção de consciência. A lei se propõe a regulamentar o direito de qualquer cidadão, inclusive de servidores públicos, a não praticar atos contrários às suas convicções morais, políticas, filosóficas e religiosas. Nessas bases, a prestação de quaisquer serviços públicos pode ser negada pelo profissional responsável sob a alegação de objeção de consciência sem que a lei preveja atendimento alternativo àquele que procurou o serviço. Inobstante os argumentos sobre a inconstitucionalidade dessa lei, denúncias recebidas pela Relatoria atestam seu impacto negativo, em especial na área de saúde.

Ouvimos relatos da negativa de atendimento à mulheres em situação de abortamento por profissionais de saúde e recusa de atendimento a um homem com as vestes identificadas com uma religião de matriz africana em um hospital público. Além da recusa, recebemos denúncias de maus tratos por profissionais de saúde a paciente transexual que apesar do seu pedido para ter respeitado seu nome social não foi atendida, sendo publicamente constrangida e submetida a fazer um exame de alta complexidade ao som de música religiosa.

O intuito de regulamentar o exercício de um direito individual à objeção de consciência não pode servir para permitir a violação de outros direitos. Seria exigível, portanto, ao menos, a garantia de que outro profissional no mesmo local e no mesmo momento realizaria o atendimento sem que a/o paciente seja submetida/o a qualquer constrangimento. Não se pode ignorar que a objeção de consciência aplicada aos serviços de saúde tem potencial altamente leviso, impactando diretamente no direito fundamental à vida.

Fomos ainda informadas da situação precária de vários serviços destinados às mulheres, a população de lésbicas, gays, travestis e transexuais (LGBT) e ao combate à intolerância religiosa. Profissionais do Rio sem Homofobia, da Subsecretaria de Políticas para Mulheres e do Centro de Promoção da Liberdade Religiosa e Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro, sem receber seus salários há meses e os serviços prestados a população parados.

Todos esses relatos são face de um momento político no qual os direitos de mulheres, LGBTs e religiões minoritárias encontram-se em constante ameaça justamente pela influência de determinados valores religiosos nas leis e nas políticas públicas.

Mais uma dessas ameaças pode se concretizar caso seja aprovado o Relatório Final da CPI do Aborto na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, no qual consta dentre as recomendações que os profissionais de saúde sejam obrigados a notificar automaticamente à autoridade policial nos casos de uma paciente chegar com sintomas de abortamento. Quebra-se com isso a confidencialidade entre tais profissionais e os pacientes e arrisca-se ao aumento significativo de mortes maternas com mulheres amedrontadas a procurar o sistema de saúde até mesmo nos casos de abortamento natural.

Nega-se às mulheres o acesso à saúde em um momento no qual qualquer brasileira grávida já se sente numa situação de desamparo diante de uma epidemia com consequências reais ainda não totalmente conhecidas para a saúde da mulher e do feto. Como se não bastasse as mulheres (e não o casal), são responsabilizadas por algo que lhes foge ao controle: o contágio do zika vírus em épocas de gravidez.

De acordo com a orientação da Organização Munidal da Saúde (OMS), o Brasil deve rever sua legislação relativa à interrupção da gravidez, especialmente diante do cenário de profundas incertezas acerca das consequências do Zika vírus em gestantes. As mulheres devem ter o direito de escolher se diante de uma gravidez nesse período deseja ou não manter a gestação, afirma a ONU. No entanto, esse debate de garantia do direito à saúde não repercurte no Congresso Nacional brasileiro, mas sim o oposto: um projeto de lei voltado a aumentar a pena da mulher que realizar um procedimento abortivo nestas condições.

Tais medidas desafiam a laicidade por serem patrocinadas por políticos e por figuras públicas religiosas que se utilizam de argumentos vinculados às suas crenças pessoais para influenciar no teor da legislação não só no âmbito federal quanto nos estados e municípios. Num Estado Laico, assegura-se a liberdade de crença, portanto, os mais diversos argumentos religiosos podem ditar a vida das pessoas no plano privado, mas não podem servir de subsídio para a restrição de direitos ou formação/extinção de políticas públicas.

O Estado Laico é essencial para a garantia de direitos de todos, mas o desrespeito aos seus ditames atinge de modo mais significativo o direito mulheres e de outras populações mais vulnerabilizadas. Um Estado Laico não é aquele que ignora a existência das religiões. Nele, é, em verdade, necessário ações e políticas para assegurar que qualquer pessoa de qualquer religião possa exercer seu credo livremente sem se ver ameaçada ou vitima de qualquer manifestação discriminatória. Mas é sim um Estado que não permite que as convicções particulares de uns legitimem a violação dos direitos dos demais.


Se você tiver denúncias sobre violações de direitos humanos relacionadas ao Estado Laico denuncie: estadolaico@plataformadh.org.br.

* Relatora de Direitos Humanos e Estado Laico da Plataforma de Direitos Humanos – Dhesca Brasil

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