Quase oito anos depois do início da implantação da reforma psiquiátrica no Brasil, metade dos 11.944 leitos psiquiátricos existentes na rede de atendimento à saúde no estado de São Paulo ainda é ocupada por pacientes moradores, um total de 6.349 pessoas. A média de internação é de 15 anos - o maior tempo de permanência foi acumulado por uma mulher, que há 67 anos vive em um dos 56 hospitais dessa especialidade existentes na capital e interior.
Outras características desses pacientes são o envelhecimento - cerca de 50% têm mais de 60 anos de idade - e o completo isolamento da família. Mais de 1 mil deles sequer possuem um nome, pois a inexistência de vínculos familiares impossibilita o resgate da identidade civil daqueles que foram internados sem nenhum tipo de documento, referência de endereço ou parentesco. Pelos critérios do Ministério da Saúde, quem permanecer mais de um ano internado é considerado morador.
O perfil completo dos moradores dos hospitais psiquiátricos paulistas será conhecido hoje e amanhã, quando a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo divulgará os resultados do primeiro censo psicossocial da população moradora em hospitais psiquiátricos, durante o Seminário Estadual de Saúde Mental: o Censo Psicossocial e os Desafios para a Desinstitucionalização. O censo voltado para viabilizar a transferência desses doentes para suas famílias ou residências terapêuticas bancadas pelo sistema público de saúde, é o primeiro no estado e provavelmente no Brasil.
Segundo os organizadores do evento, a institucionalização de pessoas com transtornos mentais em hospitais psiquiátricos constitui um dos principais desafios da reforma psiquiátrica em curso no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS). A partir dos dados levantados no censo, o governo paulista pretende desencadear ações voltadas à reabilitação psicossocial e o direito à moradia, garantidos na lei federal da reforma psiquiátrica - também conhecida como Lei Paulo Delgado ( número 10.216, de 6 de abril de 2001).
Aprovada após 12 anos de tramitação no Congresso e intensa mobilização do Movimento de Luta Antimanicomial, a legislação redireciona a assistência em saúde mental, privilegiando o tratamento em serviços de base comunitária, com a extinção progressiva dos manicônios no País. O novo modelo também prevê a redução de leitos em hospitais psiquiátricos e a criação de CAPS (Centros de Assistência Psicossocial) 1, 2 e 3 - os dois primeiros uma espécie de hospital-dia e o terceiro um substituto dos hospitais psiquiátricos, com funcionamento 24 horas para atender emergências -, bem como a ampliação de leitos psiquiátricos em hospitais gerais.
O modelo é completado com as residências terapêuticas para tirar dos hospitais os pacientes moradores, centros de convivência e cultura na comunidade, ambulatórios psiquiátricos e auxílios - como o Programa Volta para Casa, que concede aos internados há mais de dois anos e sem renda um auxílio de reabilitação (atualmente em e R$ 320,00 mensais) para viabilizar a vida do paciente no âmbito familiar. Além desse, a Lei Orgânica da Assistência Social também garante um benefício social - que pode ser cumulativo ao Volta para Casa, equivalente a um salário mínimo.
O censo revela a lentidão da reforma psiquiátrica na unidade mais rica da federação brasileira. Até hoje, a capital paulista não conta com nenhum CAPS 3, equipamento que substitui os hospitais no atendimento de emergências, no novo modelo preconizado pela reforma. A prefeitura de São Paulo programou a instalação de cinco desses CAPS até o final do próximo ano (ver matéria nesta página).
Para se ter uma idéia do grau de dependência desses pacientes das instituições hospitalares no estado de São Paulo, basta citar que no universo total de 36.797 mil leitos psiquiátricos existentes no Brasil (em hospitais do gênero e hospitais gerais), 11 mil são ocupados por moradores. Desses, mais da metade (6.349) estão no estado de São Paulo. Se a esses forem somados os moradores em hospitais no estado do Rio de Janeiro, eles sobem para 75% do total. As outras 26 unidades da federação, juntas, ficam com os 25% restantes de pacientes que vivem dentro dos hospitais.
Para o coordenador da área de saúde mental do Ministério da Saúde, Pedro Gabriel Delgado, a proporção de moradores em hospitais em São Paulo é considerada muito elevada e revela "uma certa resistência às mudanças". Pelo sistema vigente, cabe ao Ministério da Saúde repassar os recursos para implantação e manutenção da rede de atendimento integrada de saúde mental, além de fiscalizar como os governos municipal e estaduais aplicam essas verbas. Esses serviços seguem a descentralização que norteia todo o sistema de saúde no Brasil.
Na opinião de Delgado, além de ser o estado mais populoso, existem razões históricas para esse quadro. "Os estados do Rio e São Paulo abrigavam as maiores colônias de doentes mentais, como o Juqueri em São Paulo, com cinco mil pessoas, e a Colônia Juliano Moreira, no Rio, com três mil internos", afirma Delgado. Ele lembra que na década de 80, o estado de São Paulo chegou a possuir 28 mil leitos psiquiátricos.
Ele considera satisfatório o resultado obtido até agora em termos de fechamento de leitos psiquiátricos no Brasil: dos 56 mil existentes no final de 2000, restaram 36.797 em outubro deste ano. "Se os municípios não construírem redes significativas de atendimentos, esses leitos convencionais terão de permanecer", afirma. Além disso, ressalta, sobraram apenas três hospitais com mais de 600 leitos, indicando que o modelo antigo, de grandes depósitos de doentes mentais, está chegando ao fim.
A hipótese de Delgado é a de que a presença de um grande número de hospitais e de leitos psiquiátricos retardou a implantação dos serviços alternativos no estado de São Paulo. "Existem muitos interesses envolvidos nessa questão, inclusive econômicos", afirma. Segundo ele, o censo psicossocial realizado pela Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo é um passo acertado no sentido de criar alternativas para esses pacientes.
No ranking nacional de cobertura de CAPS, o estado de São Paulo ocupa o 17º lugar, com o índice de 0,44 (pouco atrás do Rio de Janeiro, com 0,49), numa escala de 0,96 - o melhor colocado é a Paraíba e o pior é o Amazonas (ver quadro nesta página). A média nacional é de 0,53, indicando que existem no País 0,53 CAPS a cada 100 mil habitantes, uma cobertura considerada de regular para boa. A cobertura ideal é de 0,70.
O parâmetro de comparação é o último ano antes da lei, que é de 2001. Em dezembro de 2000 existiam no Brasil inteiro 187 CAPS, contra 1.291 em outubro de 2008, de acordo com dados oficiais. "Esse é o principal dado que mostra o impacto da lei. Saímos de uma cobertura média de 0,18 CAPS a cada 100 mil habitantes, para 0,53", enfatiza o coordenador da área de saúde mental do Ministério da Saúde.
Apesar de ter saído de uma cobertura de 0,23 para 0,44, com um total de 196 CAPS, dos quais apenas 17 são os CAPS 3 (mini-hospitais 24 horas com capacidade para internações de até oito dias). "O estado mais rico da federação avançou menos do que poderia, com cobertura regular, abaixo da média nacional", acentua Delgado. "São Paulo precisa avançar mais na implantação de uma rede efetiva de atendimento, principalmente das emergências, instalando os CAPS 3 e aumentando o número de leitos psiquiátricos em hospitais gerais", afirma Delgado.
Como redes exemplares Delgado cita as de algumas cidades do interior paulista - Campinas, Santos e Santo André -, por integrarem assistência emergencial com os serviços prestados pelos diversos CAPS. - tipos 1, 2 e 3, para adultos, público infantil e dependentes de álcool e drogas - e à atenção primária de saúde.
Paraíba, Sergipe, Alagoas e Ceará, no Nordeste, estão entre os seis primeiros colocados no ranking de cobertura do CAPS, ao lado do Rio Grande do Sul e Santa Catarina – historicamente os melhores posicionados em termos de rede pública de atendimento à doença mental no País –, pelo fato de terem criado serviços integrados na capital e interior, explica Delgado.
Ainda de acordo com dados oficiais, 93% os CAPS em todo o Brasil são municipais e custeados pelo SUS. Cabe ao Ministério da Saúde regulamentar e apoiar com recursos a implantação desses serviços, que em apenas alguns estados pertencem às secretarias estaduais de saúde. Em São Paulo, apenas o CAPS Itapeva, na capital paulista - implantado antes da reforma e símbolo dessa concepção de cuidados aos portadores de transtornos mentais - está na alçada do governo estadual.
As residências terapêuticas, outro serviço previsto na política nacional de saúde mental decorrente da reforma psiquiátrica, também apresentaram um crescimento extraordinário, saindo de 57 no final de 2000 para 502 em outubro deste ano. Seria necessário o dobro (cerca de 900) para abrigar todos os pacientes que ainda moram em hospitais e com condições de levar uma vida com certa autonomia.
A prioridade do gasto com saúde mental no Brasil também mudou. Em 2007, apenas 37% dos R$ 1,2 bilhão investidos pelo SUS nessa área foram com despesas hospitalares. Em 2002, esse item de gastos consumia 91% dos recursos públicos destinados ao tratamento desses doentes.
(Do Boletim do Núcleo do Ministério da Saúde -PR)
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