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sábado, 8 de agosto de 2009

Para despertar os homens

Escritores se serviram de epidemias como tema para refletir o comportamento coletivo diante de uma ameaça de calamidade social

na Gazeta do Povo Luciana Romagnolli

Eram outros os tempos, outras as pestes. A bubônica – ou negra – dizimou quase um terço da população europeia no fim da Idade Média, no século 14, e atacou novamente, ainda que em menor escala, a Londres de 300 anos depois, ressuscitando o pânico medieval. A gripe espanhola chegou mais tarde, já no início do século passado, e maltratou os habitantes de Curitiba no agora remoto 1918. Situações em que a existência humana foi despertada da distração com as pequenezas da lida diária para encarar sua própria fragilidade.

Vida e morte em jogo, mais o pânico a exaltar os ânimos, compõem um painel de elementos caros à ficção. Dramáticos por si só, uma vez que abalam a ilusão de estarmos seguros no mundo, invocando seu avesso, o pavor existencial. Cada um à sua época, os escritores Daniel Defoe (1660-1731) e Valêncio Xavier (1933-2008) enxergaram com nitidez o potencial literário que brotava dessas comunidades atingidas por epidemias e converteram os fatos em histórias com tratamento documental (o que se explica pela particularidade de terem sido ambos jornalistas), em que a realidade se impõe com tanta contundência que se confunde com o ficcional.

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Cidade é devastada por causa do pânico gerado pela epidemia branca em Ensaio sobre a Cegueira (2008), de Fernando Meirelles

Prateleira

Quando os órgãos oficiais sugerem evitar aglomerações para prevenir a gripe A, tão oportuno quanto gastar o tempo lendo é recorrer às prateleiras de DVDs. Confira uma seleção de filmes sobre epidemias

Cultuados

Dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles, Ensaio Sobre a Cegueira tem como protagonistas Mark Ruffalo e Julianne Moore, às voltas com a “treva branca”.

No meio da década de 90, o diretor Terry Gilliam atraiu Brad Pitt e Bruce Willis para Os Doze Macacos, ficção científica em que se volta ao passado para descobrir a origem de um vírus. Muita gente não entendeu nada, mas o longa era sempre lembrado nas listas dos preferidos.

Danny Boyle, por sua vez, filmou um vírus que transforma humanos em zumbis no apocalíptico Extermínio (que ganhou continuação de Juan Carlos Fresnadillo).

Arrasa-quarteirões

Will Smith é o último sobrevivente de uma Nova York dizimada por um vírus desconhecido em Eu Sou a Lenda, de Francis Lawrence. Já Resident Evil, versão para o cinema do jogo, dirigida por Paul W. S. Anderson, põe Milla Jovovich para conter um vírus que escapou de um laboratório sabotado. Mais zumbis em ação. (LR)

Suas obras, assim como A Peste, de Albert Camus, e Ensaio Sobre a Cegueira, de José Sara­ma­go, nobéis que se valem de estratégia distinta – inventar epidemias para sublinhar características humanas –, são fontes interessantes para se pensar sobre o comportamento coletivo diante da ameaça de uma calamidade social.

Defoe é célebre pelas aventuras solitárias de Robinson Crusoé. À parte a carreira consagrada como romancista, em que se insinuavam os primeiros sopros do realismo, o inglês é considerado também precursor do jornalismo moderno. No livro Um Diário do Ano da Peste, publicado em 1722, mistura as estações, construindo uma ficção factual em que a veracidade dos dados reportados é o mais importante.

O autor tinha menos de cinco anos quando a peste negra pesou sobre Londres. O personagem que criou para relatar em detalhes os acontecimentos, contudo, é contemporâneo da epidemia propagada por ratos e pulgas no verão de 1665, e se apresenta como uma testemunha ocular com habilidades de repórter, a divulgar listas de sepultamentos a cada semana, para contabilizar o aumento da mortalidade que seria o primeiro indício da situação de catástrofe iminente. Sem ignorar quando os números eram adulterados pelos in­­for­­mantes oficiais.

Curioso é que, então, a peste chegava de longas jornadas de navio e se espalhava a passos curtos. Uns poucos casos apareciam em uma paróquia, enquanto outras não se afetavam. Só mais tarde outra paróquia era vítima. E assim se seguiam pacientemente, uma a uma, sem o furor que os primeiros doentes por gripe A identificados no México e nos Estados Unidos imediatamente infligiram ao resto do mundo.

Por outro lado, uma coisa não mudou: tão rápido quanto a peste, se distribuíam (e ainda o fazem) os rumores. “Eu poderia preencher este relato com as estranhas versões que, todos os dias, as pessoas davam sobre o que tinham visto”, escreve Defoe, para então criticar a infundada convicção: “Cada um ficava tão certo de ter visto o que supunha ver, que não dava para contradizê-lo sem perder um amigo ou ser considerado rude e mal-educado por um lado, profano e insensível por outro”.

Na ocasião da gripe espanhola, a imprensa já era ativa. Va­­lêncio Xavier se valeu de notícias recortadas dos jornais O Diário da Tarde e Commercio do Paraná, além de testemunhos de sobreviventes, para evocar os dias de epidemia em O Mez da Grippe, evidenciando a esquiva dos jornais em admitir a gravidade da situação. A narrativa que salta das colagens de textos e imagens feitas por Valêncio (colaborador da Gazeta do Povo entre 1995 e 2003) ecoa hoje. Fragmentos como “não haverá concerto” ou os órgãos públicos “aconselham insistentemente que se evite agglomeração, principalmente à noite, afim de impedir a propagação da ‘grippe espanhola’” (sic) guardam semelhanças gritantes com os acontecimentos mais recentes. Olhar para o passado da cidade e avistar uma epidemia muito mais devastadora do que a atual pode alarmar os mais impressionáveis, mas, também, coloca o presente sob perspectiva.

Nas páginas escritas por Saramago e Camus, a veracidade dos fatos não tem o mesmo valor. As situações epidêmicas são antes metáforas que conduzem à reflexão sob as condições da existência humana. Nossas qualidades e defeitos superexpostos por situações-limite.

Existencialista francês como Sartre, com quem rompeu por questões políticas, Camus discutiu no romance A Peste a apatia humana cultivada no cotidiano e só destituída provisoriamente em atmosferas de alerta, como na história da cidade que se atemoriza quando ratos ensanguentados emergem dos subterrâneos prenunciando a agonia que atingirá os moradores, obrigando-os a se confrontar com a precariedade de suas vidas.

Mais popular entre esses es­­critos é Ensaio sobre a Cegueira, por conta da adaptação para o cinema comandada pelo diretor Fernando Meirelles, bem-sucedida ao recriar em imagens a contundência arrasadora das palavras do escritor português.

Saramago foge ainda mais à realidade factível, forjando epidemia inédita. A “treva branca” acomete a todos menos um e, pelo contraste da irracionalidade violenta da multidão incapaz de enxergar à sua frente com a única mulher que conserva a habilidade de perceber o mundo (visualmente), chama à lucidez os homens que se abstiveram de olhar adiante, cegos que estavam na fúria de satisfazer suas necessidades mais básicas.

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