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domingo, 6 de setembro de 2009

A notícia e o espetáculo

Por Mauro Santayana no blog Coisas da Política - JB

Quando o jovem Orson Welles, em outubro de 1938, noticiou, pelo rádio, que os marcianos haviam desembarcado em New Jersey, fazia, pela primeira vez, a fusão entre a notícia e o espetáculo, e causava pânico entre os ouvintes, certos da chegada dos invasores celestes. Filtrar a realidade de sua aparência é difícil: porque uma categoria se integra à outra. O problema é que, na comunicação, o que parece ser costuma prevalecer sobre o que é. Para escapar da ilusória imagem que mascara a realidade, em busca de seu sumo, os homens se valem, há milênios, da abstração. Os mais importantes instrumentos de abstração da realidade são os números e a palavra escrita. Aristóteles se destaca entre os pensadores que abstraíram a realidade episódica, ao inseri-la no todo, e, assim, dialeticamente, melhor entendê-la.

Orson Welles e Aristóteles nos conduzem a uma situação deplorável e pobre: suspeita-se que um deputado estadual do Amazonas, homem de televisão e ex-delegado de polícia, mandava matar homossexuais, e outros “indesejáveis”, e, ao antecipar-se à polícia, “descobria” e noticiava os crimes. Entre os assassinados estariam inimigos seus no controle do tráfico de drogas. À parte o horror que os crimes atribuídos ao jornalista Wallace Sousa, ao seu filho e seus irmãos provoca, vale a pena discutir a necessidade de se separar, nos meios audiovisuais, espetáculo e notícia. É nesse particular que a mediação do texto impresso, com a necessária abstração do redator, suscita a reflexão de quem lê e supera as ilusões das imagens isoladas. Elas podem trazer a comoção imediata, que é a alma do espetáculo, mas dificultam a apreensão do fato, com seus antecedentes e desdobramentos.

Os meios de comunicação são conduzidos à tentação de produzir mais o espetáculo do que difundir a informação. Há que se distinguir o teatro, que sempre foi, em todo o passado, meio de informação e de formação, quando os jornais não existiam ou apenas começavam a circular. Era, para os gregos, leitura dramatizada dos textos de grandes autores. Quando vamos ao teatro, sabemos que assistiremos a um espetáculo: entramos no mundo mágico da ficção, dispostos a nos exilar de uma realidade, para viver outra, aquela que um bom dramaturgo construiu de sua experiência e de sua emoção. A televisão e o rádio nos jogam em uma sorte de sonambulismo, e a passagem de um programa a outro se faz apenas com as vinhetas da propaganda. Assim, informação, propaganda e ficção se mesclam e se faz difícil separá-las para o uso da razão. O texto escrito permite as pausas da reflexão, o seu abandono por algum tempo e o retorno ao papel impresso depois.

Em A double life, filme de George Cukor, de 1947, o excepcional ator Ronald Colman interpreta um ator (Anthony John) que encena Otelo, de Shakespeare, na Broadway, e, pouco a pouco, assume a identidade do mouro de Veneza. Uma noite, em pleno espetáculo, quase mata Desdêmona, interpretada por uma atriz que fora antes sua mulher. Ao mesmo tempo se descobre o assassinato de uma garçonete, e ele é visto como suspeito. Cada vez menos Anthony John, e cada vez mais Otelo, o ator-personagem se mata, depois de ter fingido o suicídio, centenas de vezes, no mesmo palco.

Wallace de Sousa é apenas o protagonista de uma farsa sangrenta, como foi denunciado pelo Ministério Público, ao matar, para em seguida exibir, na tela, as vítimas de sua justiça sumária e rentável. Rentável em audiência e em votos, desde que foi o deputado estadual mais votado no Amazonas no último pleito. Ele não se limitava a transformar a notícia em espetáculo, mas armava, com a realidade do crime, o espetáculo que se transformava em notícia.

Nem todos matam para noticiar, mas há os que roteirizam a informação, constroem-na, a divulgam e a repercutem. A isso se dá o nome de factoides. É assim que repórteres pautam entrevistados, e insinuam que só serão notícia se declararem o que interessa a seus editores. Da mesma forma agem alguns especialistas em marketing político, que transformam os clientes em personagens fictícios, para efeito eleitoral.

Quarta-feira passada, a Assembleia do Amazonas decidiu dar mais 10 dias de prazo ao provável assassino – indiciado pelo Ministério Público – para nova defesa, antes de decidir se ele violou ou não a ética parlamentar. É provável que, nesses nossos tempos, ele acabe condenado pela Justiça e absolvido pelos seus pares.

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