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sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

CPI da Dívida sofre boicote no governo, na Câmara e na mídia

Ivan Valente aponta resistência de governo e da oposição de direita em investigar pagamentos ilegítimos de débitos

Auditoria da dívida está prevista na Constituição

Renato Godoy de Toledo
da Redação do Brasil de Fato



A dívida pública brasileira tem aumentado nos últimos anos. Enquanto isso, o pagamento de juros e amortizações compromete anualmente cerca de 30% do orçamento e 5% do produto interno bruto (PIB), o que restringe a política econômica e o gasto público. Atualmente, a dívida brasileira atinge o patamar de R$ 1,6 trilhão. O gasto anual com a rolagem é de cerca de R$ 165 bilhões.

Uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara Federal investiga os indícios de ilegitimidade desse débito. Porém, o assunto parece não ter relevância para grande parte da imprensa brasileira.

Instalada em agosto de 2009, a consolidação da CPI em si já é considerada vitoriosa pelos proponentes e pelos movimentos que lutam por uma auditoria da dívida brasileira. O processo de criação da comissão requereu um esforço dentro e fora do Congresso, com o recolhimento de assinaturas e realização de debates.

A comissão não contou com a simpatia nem da base governista, nem da oposição de direita, segundo o deputado federal Ivan Valente (Psol-SP), proponente da CPI. Por uma questão regimental, a comissão teve que entrar na ordem do dia e foi assegurada pelo então presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia (PT-SP) e confirmada pelo atual Michel Temer (PMDB-SP).


De acordo com Valente, o tema passa por todos os setores da sociedade, daí a importância de se trazer a questão para a ordem do dia no Congresso Nacional. "A dívida brasileira é o principal nó em nossa economia. Além do que essa insanidade de pagar a dívida religiosamente contribui para a ideia de ter um superávit primário, o que tira recursos da saúde e da educação", justifica.


Composição desfavorável


A composição da mesa teve uma demora inédita: seis meses. Contra a morosidade, Valente ameaçou levar o caso ao Supremo Tribunal Federal (STF) e a Câmara, enfim, acatou o pedido.

Mas o mais inusitado foi a escolha dos representantes da mesa. Há um acordo tácito na Câmara que garante ao proponente da CPI a presidência ou a relatoria, mas Valente não obteve nenhuma das duas.

A presidência da comissão ficou com o deputado Virgílio Guimarães (PT-MG) e a relatoria com Pedro Novais (PMDB-AP), que também foi relator da Lei de Responsabilidade Fiscal – dispositivo que restringe o gasto público para honrar as dívidas.


Boicote total


Segundo Valente, há um boicote do governo e da oposição de direita para não trazer "figurões" da gestão atual e anterior. "Tentamos trazer o [Pedro] Malan e o [Antonio] Palocci [ambos ex-ministros da Fazenda] e até o Fernando Henrique Cardoso, mas a base do governo e o PSDB boicotam essas convocações. Ainda não ouvimos o [Henrique] Meirelles e o [Guido] Mantega. Inclusive, há uma orientação do governo para que eles não sejam convocados", afirma o parlamentar.
O principal figurão a depor na comissão foi o ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga. Em seu depoimento, o banqueiro afirmou que a dívida brasileira é "pesada e grande, mas administrável".

Além dessa resistência no parlamento, Valente relata o descaso da grande imprensa em relação ao tema. "Há um boicote total. A Folha de S.Paulo, por exemplo, se recusou por três vezes a publicar um artigo nosso sobre a CPI. Esses veículos são financiados por grandes bancos, que se beneficiam do pagamento da dívida", analisa.


Procedimentos

 Até o momento, os debates na CPI circundam a questão do endividamento dos Estados, que exigem renegociação, e, quando puxado pelo proponente e pelos movimentos, discutem a política econômica por meio do pagamento religioso de juros e amortizações.

A comissão se encontra em fase final e o relator Pedro Novais deve apresentar o seu parecer em meados de março. Valente prevê que o relatório deve ser conservador e sua assessoria já analisa dados levantados para propor um documento alternativo, que pode ser votado na comissão.

"Estamos analisando para ver se há irregularidades no pagamento da dívida. Encontramos algumas coisas, mas não podemos adiantar", explica o deputado.

 

O exemplo equatoriano

País foi o primeiro da América Latina a realizar uma auditoria oficial da dívida externa


Dafne Melo
da Redação Brasil de Fato

O Equador provou que auditar a dívida externa não é nenhum bicho de sete cabeças. Enquanto a maioria dos governos latino-americanos resiste à proposta e demonstra total falta de interesse político em fazê-lo, o governo de Rafael Correa decidiu, em 2007, formar uma equipe para avaliar quanto da dívida do país era fraudulenta.

Dentre os integrantes, estava o historiador argentino Alejandro Olmos Gaona. "O exemplo equatoriano é importante porque foi a primeira vez que um governo se atreveu a auditar suas contas públicas", afirma. De acordo com dados da Auditoria Cidadã, a América Latina, em 1970, devia ao exterior 32,5 bilhões de dólares. Em 2002, devia 727 bilhões de dólares, mesmo tendo pago 193 bilhões de dólares a mais do que devia.

A auditoria realizada pelo Equador – que foi concluída em 2008 – concluiu que mais da metade da dívida do país era fraudulenta. Da posse dos estudos, o governo equatoriano tem conseguido negociar seus passivos em outro patamar, ainda que abaixo do desejado. "A situação difícil do Equador, como resultado da crise internacional e a queda dos preços do petróleo, impediu que o país conseguisse impugnar parte da dívida em Nova York", diz Gaona. O historiador destaca também que, no caso equatoriano, há uma série de processos legais sendo movidos contra ex-funcionários do Estado, acusados das fraudes.

Outro ponto positivo é que o estudo da dívida nesse país – com livre acesso a documentos – possibilitou identificar padrões de endividamento que certamente ocorreram em todos outros países, além de obter números que deixam claro o caráter espoliativo dos mecanismos de empréstimos. No Equador, por exemplo, de todos empréstimos contraídos entre 1989 e 2006, 14% foi utilizado em projetos de desenvolvimento social e os 86% restantes usados para pagar vencimentos da própria dívida acumulada. De 1982 a 2006, o país Equador pagou quase 120 bilhões de dólares, quanto recebeu apenas 106 bilhões em novos empréstimos, ou seja, contraíram uma dívida de cerca de 14 bilhões.

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