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quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Debate: a Arena de ontem e a oposição de hoje

Como será a atitude da oposição, em especial o PSDB pós-eleição de 2010, se, como indicam as pesquisas, sair derrotada pela terceira vez consecutiva? Esse assunto marcou a breve análise da conjuntura eleitoral e das perspectivas para o próximo governo, feita pela Diretoria Executiva do Cebes, em reunião no último dia 23. Nas avaliações, dois textos foram citados como base para enriquecer o debate: “O fantasma da UDN”, de Argemiro Ferreira, publicado na revista Carta Capital, e “Udenismo é tentação dos que perdem força no Congresso”, escrito por Maria Inês Nassif, no Valor Econômico. Ambos trazem semelhanças entre oposição atual e UDN, que, no passado perdeu três pleitos seguidos. Confira abaixo os dois artigos.
Diretores presentes: Roberto Passos Nogueira, Hugo Fernandes Junior, Guilherme Delgado, Paulo Amarante, Ana Costa, Nelson Rodrigues dos Santos, Alcides Miranda, Luiz Neves, Lenaura Lobato.
 

O fantasma da UDN
De como o PSDB acabou por ocupar, com extrema naturalidade, o papel que em outros tempos coube à direita golpista

Argemiro Ferreira, na revista Carta Capital

No Brasil, um Alzheimer singular, indiferente à idade, apaga a memória de políticos da oposição e do jornalismo a serviço deles. Em razão do fenômeno, uma geração menos jovem, resistente àquele mal, tenta, nem sempre com sucesso, devolver-lhes a memória recordando lições da história recente – como fez há dias o professor Fábio Wanderley Reis.

O desconforto desse cientista político, estudioso das posições tucanas, ficou claro. Repreendeu a pressa dos partidos de oposição e sua mídia, ao denunciar uma mexicanização no País. Eles veem o PT em duplo papel de vilão: além de ser um novo PRI, ainda persegue o modelo chavista. Lula e o PT são bem menos ambiciosos: optaram por vitórias limpas em duas eleições, governo com 80% de aprovação e o respeito internacional.

Antes o presidente amargou três der-rotas na oposição. Não tinha provado o gosto do poder. Mas, em vez de pregar um golpe, retomou a construção partidária com a força crescente dos militantes. Por que o PSDB, que governou em dois mandatos – de 1995 a 2002, graças a eleições vencidas no primeiro turno – está sem condições de recuperar a Presidência pelo voto, mesmo tendo trabalhado no projeto de “20 anos no poder?” E por que, se era parte da esquerda ao nascer, apresenta-se como a direita arrogante que execrava?
A origem da contradição vivida pelos tucanos pode ser o oportunismo da aliança profana em 1994 com o PFL – que já fora Arena e PDS, e agora virou DEM. Por mais que este mude o disfarce, fingindo-se liberal, social, democrático (o codinome atual, irônico, é “Democratas”), nunca deixará de ser o partido da ditadura, a direita escarrada.
Último rebento a se separar do PMDB de Ulysses, o PSDB saiu, como o PT de Lula, do ventre dos “autênticos” – única esquerda tolerada pelo regime, exatamente por ser parte do único partido da oposição legal. Para compensar as dores do parto, os tucanos vieram com plumagem europeia – social-democracia com acadêmicos e intelectuais em vez de sindicatos.

Tinha, sim, havido namoro entre a elite acadêmica politizada – ou, pelo menos, parte dela – e líderes sindicais que a princípio evitaram os partidos e só depois sonharam em criar o deles. Como parte do processo, FHC debateu com eles. Achava não ter chegado o momento de enfraquecer o PMDB, ainda a bandeira maior da oposição. Houve reuniões- em São Paulo. Ao fim de uma, em 1978, dirigentes sindicais foram levados por Lula a um comício de FHC, pressionado por ele a se candidatar ao Senado em sublegenda do PMDB. O que o tornaria suplente e, depois, senador – em 1983, quando Franco Montoro, eleito governador, deixou-lhe o mandato restante.
A razão ostensiva de outra reunião, num hotel de São Bernardo, em 1979, foi a discussão ampla – com meia centena de líderes sindicais, uns 70 intelectuais e mais de cem parlamentares – sobre a natureza de um partido dos trabalhadores. Circulou o documento “PT, Saudações”. Mas FHC influiu para a decisão ser adiada: achou estreita a ideia de partido “clas-sista”. Quando afinal o PT foi criado, em 1980 (com reconhecimento oficial no início de 1982), FHC optou por ficar no PMDB, com gente que considerava conservadora, como Montoro – o mesmo que, ironicamente, acabaria por deixar o partido em 1988, juntamente com ele, para fundar o PSDB.
Pelo menos até 1994, FHC parecia considerar-se de esquerda. O New York Times optou pelo rótulo “centro-direitista” (às vezes, “direitista”). Foi cor-rigido uma vez pela embaixada brasileira, que invocou sua militância anterior na esquerda. No National Press Club, de Washington, ele próprio chegou a citar, com orgulho, o trabalho de jornalista no semanário esquerdista Opinião. Quando FHC e o PSDB assumiram a virada à direita? O plano original pode ter sido outro: ampliar o partido e livrar-se da companhia incômoda do PFL-DEM. O PSDB cresceu, tornou-se o maior no Congresso, mas não o suficiente para dispensar o aliado. Ao contrário, precisou de mais penduricalhos – para aprovar obscenidades como a emenda da reeleição.
Um colunista encantou-se com autoflagelações divertidas de FHC. Como esta, num jantar: “Tenho de sair agora. Não posso me atrasar para a vaia que vou receber amanhã em Recife”. E esta confissão: “O FH que vocês conhecem é melhor que o presidente. O presidente tem cada aliado! Como cidadão sou mais seletivo nas minhas companhias”. Eram mesmo más companhias. Ele e o PSDB fizeram opções. Colados ao PFL, viraram à direita, à sombra da moeda, contaminaram-se. Incapazes de mudar o aliado, foram mudados por ele.
Na eleição de 1998, acusaram Lula e o PT de tramar a desvalorização do real. Uma correção, necessária, acabou adiada por razões eleitorais, o que envenenou o segundo mandato. Em 2002, ficou complicado. Ante o crescimento do rival, com José Serra já candidato, o PSDB- abraçou a tática do medo ao começar a especulação contra a moeda. Excedeu-se. Por razões puramente eleitorais, alimentou o fantasma de que Lula seria a catástrofe. Mas ocorreu o inverso: a derrota tucana acalmou os mercados e expôs a leviandade dos governistas.
O partido dos “20 anos no poder” descobriu então duas coisas: 1. Sem o controle do governo não ganha eleição (até com ele pode perder). 2. Aliado ao PFL-DEM, perde a identidade. A vitória de 1994 tinha sido menos de FHC, substituído por Rubens Ricupero (e depois Ciro Gomes) do que do presidente Itamar, que sem ele lançou e defendeu o real. A Ricupero, por obra e graça da antena parabólica, ficamos devendo a confissão explícita sobre o arsenal tucano de truques sujos: “O que é bom a gente mostra; o que é ruim a gente esconde”. Faltou um grão-tucano confessar (pela antena) mais truques, como a apropriação do real ou as assinaturas de FHC (já candidato e fora do governo) no dinheiro novo.
Restaria ao PSDB, finda a eleição, a busca de nova identidade. Qual seria ela? A vocação governista é sugerida nas três primeiras letras da sigla. O velho PSD ganhava eleição até com derrota de seu candidato – caso de Cristiano Machado em 1950, quando o partido aderiu a Vargas por baixo do pano e enriqueceu o vocabulário político com o verbo “cristianizar”. A presença de Aécio Neves, neto e herdeiro político de ilustre raposa pes-sedista (Tancredo, último ministro da Justiça de Vargas), reforçaria a tese, não fosse sua habilidade política tão rejeitada no PSDB. Mas a cadeira garantida no Senado e a possível reeleição do sucessor à frente do governo de Minas o deixam com cacife – se é que vale a pena ficar e mudar a imagem do partido.
Capaz de milagres, Tancredo Neves perdeu uma eleição em 1960 para o governo de Minas e no ano seguinte governou o Brasil como “premier” – graças à sua solução para a crise da renúncia de Jânio. No tabuleiro de xadrez dos anos 1980, deixou o PMDB e criou o PP. Voltou atrás depois e viu cair-lhe no colo a eleição indireta, com a derrota das Diretas de Ulysses. O estilo Aécio, oposto a um PSDB udeenizado e golpista, privilegiaria acordo e não confronto. O avô sempre teve a UDN como adversária. Sofreu ao lado de Vargas o assalto final dos golpistas sem votos. A aposta tucana, menos nas urnas do que no golpe apoiado no poder da mídia e na ilusão do tapetão judiciário, pode recomendar rumo diferente a Aécio.
Difamação, preconceito, arrogância e ódio são ameaças a qualquer partido político. A falta de votos alimenta golpismo, denuncismo e escandalização. A UDN das vestais, dos bacharéis e dos intelectuais, antecedeu os tucanos. E antes dela houve os derrotados da República Velha, inventores das cartas falsas de Artur Bernardes em 1922, inspiração da Brandi de Lacerda. O PT enfrentou, em 2006, a denúncia do dossiê, que só na semana passada o STF afinal mandou arquivar – por absoluta falta de provas, apesar de bancado na arti-culação midiática Globo-Veja-Folha-Estadão para forçar o segundo turno. O repeteco do denuncismo em 2010 vem da mesma mídia tucana, buscando igual efeito.
Sob o impacto da morte de Vargas, a UDN golpista perseguiu JK e Jango até o golpe de 1964. Coube a Afonso Arinos de Melo Franco reconhecer, anos depois, o horror de seu partido às reformas: “Por trás da luta pela legalidade e contra Getúlio, de que fui porta-voz, havia, também, a recusa do partido, militarista e conservador, em aceitar a fatalidade de certas mudanças”. As suces-sivas derrotas nas urnas empurram o PSDB para rota semelhante. Uma diferença sutil em relação ao passado é que as vivandeiras que antes frequentavam os quartéis, hoje momentaneamente imunizados pela memória da ditadura militar, passaram a buscar os aquários nas redações. Sempre em nome da “ética”, da revolta de 1922 ao golpismo de 2010.
Uma oficialidade militar jovem, os tenentes, marcou todo o período anterior à Revolução de 1930. Entre eles, Eduardo Gomes, um dos 18 do Forte em 1922, candidato derrotado da UDN à Presidência em 1945 e 1950. Houve causas nobres, mas não a daquela revolta de 22 – mera resposta à “ofensa” de Bernardes ao marechal Hermes – em cartas falsas. Para os tenentes, o fato de presidir o Clube Militar fazia de Hermes, um ex-presidente da República, comandante do Exército. Mas o marechal foi preso e o clube, fechado. Não se sabe de inquietação militar no atual ano eleitoral, mas o clube continua o mesmo. Metralha -e-mails raivosos com a palavra de oficiais da reserva nostálgicos da ditadura.
“Talvez se queira udeenizar de vez, tentar chamar os militares”, escreveu Fábio Wanderley Reis, numa provocação ao partido sem identidade, às vésperas de nova derrota. Ele acha “marchas da família” difíceis hoje. Além disso, não se fabricam Vernon Walters como antigamente. Nem Lincoln Gordons. No elenco golpista, ficaram os sem-voto de sempre – e a mídia com o sonho do tapetão.

Udenismo é tentação dos que perdem força no Congresso
Quadro partidário paga o preço do passado

Maria Inês Nassif, no Valor Econômico
Não se constroem partidos do nada. Foi um excessivo otimismo imaginar que o Brasil iria sair de uma ditadura de 21 anos, 13 deles com partidos legais construídos à imagem e semelhança do regime ditatorial, e de imediato iriam surgir partidos orgânicos e prontos para a democracia que se conquistava. Mais que isso, era difícil imaginar que as definições partidárias ocorreriam sem que o país pagasse pelo arcaísmo político embalado não apenas pelo regime militar, mas também pelo período democrático de 1945-1964 e pelo varguismo. Antes do bipartidarismo, o crescimento do PTB acabou desequilibrando um poder político oligárquico, que se compunha conforme suas conveniências para conseguir chegar ao poder pelo voto, e uma oposição desenraizada das bases que namorou e acabou casando com o golpismo.

Não se apaga o passado político, muito menos por ato institucional. A ditadura, que se justificava como um “contra-golpe” à ação das esquerdas que se organizavam em lutas populares, acabou com os partidos políticos mas não com as oligarquias; matou na base um partido de massas, o PTB, que começava a se cristalizar; desorganizou os movimentos populares que poderiam dar massa orgânica aos partidos; reforçou nas elites a percepção de que o Brasil precisa sempre um poder “moderador”, seja um rei, as Forças Armadas ou uma elite com um enorme poder de pressão sobre a máquina de governo, o Congresso e os partidos tradicionais.

O envolvimento de elites que deram decisivo apoio, no momento seguinte, aos movimentos pela redemocratização, deu aos partidos que se definiam, nesse momento, à direita, à esquerda ou ao centro, a impressão de que levaram juntos consensos que seriam eternos. Os movimentos de massa pelas eleições diretas, depois pelas eleições de Tancredo Neves, foram raros momentos de unidade efetiva entre partidos e massas. Uma ilusão de consenso idílico.

No momento da normalização democrática, construir partidos com bases e dar composição orgânica a eles tornou o pós-ditadura menos idílico. Sem know-how de partidos de massas, o Brasil se viu novamente construindo acordos partidários com as velhas oligarquias e construindo novas – o antigo MDB foi uma fonte inestimável de formação de “oligarquias emergentes”. A origem do atual quadro partidário são três: a Arena, que trouxe junto a UDN e parte do PSD; o MDB, que captou os antigos trabalhistas, parte do PSD e outros partidos; e os movimentos de massa que construíram o sindicalismo dos anos 80 e as grandes mobilizações de rua pró-Diretas e pró-Tancredo.

De todo o quadro partidário pós-ditadura, o que deve sobrar no pós-Lula é o PT, que fugiu ao modelo dos demais partidos, o PSB, que fica no meio do caminho e os pequenos partidos ideológicos. Vinte e cinco anos depois da ditadura, o país amarga de novo um momento de enorme instabilidade partidária. Depois das eleições, com ou sem dificuldades legais para a formação de novos partidos ou para realinhamento partidário dos atores políticos, será inevitável que isso aconteça.

O problema é que deve acontecer uma reestruturação partidária à imagem e semelhança da ocorrida a partir de 1979, quando a formação de partidos seguiu mais a lógica de interesses regionais de grupos políticos, ou o interesse pessoal de lideranças, do que propriamente o alinhamento ideológico.

Ainda assim, como os partidos – à exceção do PT, o único que construiu e manteve uma estrutura partidária mais orgânica -, no modelo atual, não conseguem sobreviver muito tempo longe do poder, que alimenta os apoios a nível regional, o realinhamento deve ocorrer muito mais em torno do governo eleito do que propriamente uma rearticulação da oposição. A oposição, se não apresentar uma alternativa menos udenista para os políticos que estão se desinfileirando de propostas mais radicais, corre o risco de inchar o PMDB – um jeito de aderir ao governo recém-eleito e provavelmente com maioria parlamentar sem dizer que está aderindo.

O problema é que, o que sobrar de oposição, terá uma força mínima dentro do Congresso. A tentação do udenismo, nessa situação, aumenta muito. A instabilidade partidária, nesse caso, pode ser um fator de desestabilização da própria democracia.

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