Um jornalista acusado de estupro, um jovem militar fã da cantora Lady Gaga e um grupo de militantes de várias partes do mundo provocaram na política internacional americana um estrago que nem a espionagem soviética conseguiu fazer nos tempos da Guerra Fria. A revelação gradual de um pacote de 250 mil documentos da diplomacia americana pelo site WikiLeaks colocou em situação constrangedora o governo dos Estados Unidos e fez com que os opositores de Washington sentissem um certo gosto de vingança – afinal, não é sempre que um aparato estatal que conta com 17 agências de inteligência é revelado de forma tão crua.
A duração e a profundidade da crise, entretanto, vai depender muito do que vier a público nos próximos dias – até o fim da tarde de ontem, o site do WikiLeaks (cablegate.wikileaks.com) contava 291 documentos publicados, de um total de 251.287 em poder do site. A visão americana sobre o incidente, até agora, foi resumida por uma declaração dada ontem pelo secretário de Defesa, Robert Gates. “É embaraçoso? Sim. É desastrado? Sim. Mas as conse quências para a política externa dos Estados Unidos, creio, são bastante modestas.”
E ele tem razões para pensar assim. Segundo fontes ouvidas pela Gazeta do Povo, a esmagadora maioria das informações divulgadas até agora são corriqueiras para os diplomatas. É incômodo vê-las publicadas, porque foram, originalmente, redigidas para consumo interno. “Como diplomata experiente que fui, vejo tudo isso com certo sentido de humor”, observa Roberto Abdenur, que foi secretário-geral do Itamaraty entre 1993 e 1995 e embaixador brasileiro em Washington no primeiro governo Lula. “É irônico que um país que se dedica tanto a influir sobre os outros países e a investigá-los tenha suas comunicações tornadas tão flagrantemente públicas.”
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Personagem
Acusado de estupro, pivô já foi hacker
O personagem-chave da divulgação dos “arquivos secretos” da diplomacia americana é Julian Assange, jornalista australiano que mora na Europa há anos. Na década de 80, ele fez parte de um grupo de hackers denominado International Subversives, e chegou a ser preso sob a acusação de invadir computadores de uma universidade, de uma companhia telefônica e de diversas empresas. Foi libertado depois de pagar multa.
Em 2006, Assange participou da fundação do WikiLeaks, do qual se tornou porta-voz. O principal trunfo do site foi revelar informações mantidas em segredo sobre as guerras do Iraque e do Afeganistão, em julho. No mês seguinte, Assange foi acusado de estupro e assédio sexual por duas mulheres, na Suécia. Uma ordem de prisão foi expedida contra ele, no mês passado, forçando-o a deixar o país.
A pessoa apontada como respon sável pelo vazamento dos dados do Departamento de Estado é Bradley Manning, um ex-analista de inteligência do Exército norte-americano, de 23 anos. Man leu está detido em uma prisão militar na Virgínia, depois de ter relatado seus feitos ao ex-hacker Adrian Lamo, que o entregou às autoridades. A Lamo, ele disse que ia trabalhar levando um CD com músicas de Lady Gaga, sobre o qual ele gravava dados retirados de uma rede militar secreta da internet.
Para o Brasil, poucas novidades surgiram. A observação de que o governo brasileiro prende pessoas acusadas de terrorismo sob outras acusações, segundo Abdenur, é, desde o início, uma posição oficial do governo brasileiro, que não tem leis contra o terrorismo. E as indiscrições do ministro da Defesa, Nelson Jobim, que teria tachado de anti-americano o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, atual ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos, também não teriam nada de mais. “São episódios saborosos, que trazem à luz alguns fatos pouco percebidos”, comenta.
Potencial explosivo
Se o WikiLeaks ficar só nas pequenas notícias da crônica diplomática, o dano poderá não ser tão grande. Se informações mais sensíveis vierem a público, problemas podem surgir. Um telegrama publicado ontem falava sobre a pressão americana para manter armas nucleares táticas em território alemão, contrariando esforços do ministro de Relações Exte riores do país, Guido Westerwelle. Assuntos como esse podem elevar o potencial explosivo dos vazamentos.
Para Paulo Roberto de Almeida, que foi ministro-conselheiro da Embaixada do Brasil em Washing ton e assessor especial do Núcleo de Assuntos Estratégicos da Pre sidência da República, há alguns efeitos que já podem ser considerados desastrosos, porque a relação de confiança entre os personagens da diplomacia está abalada.
“As pessoas vão pensar duas ou três vezes antes de aceitar um convite para jantar com o embaixador americano”, diz. Esse tipo de encontro, meio oficial, meio pessoal, é matéria-prima para muitos relatórios enviados pelos diplomatas. De reuniões como essa saíram, por exemplo, relatórios com opiniões do ministro da Defesa, Nelson Jobim, e do general Jorge Armando Felix, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional.
Almeida, que conhece a fundo a diplomacia americana e é autor de um guia para pesquisadores com indicações sobre onde encontrar informações sobre o Brasil nos arquivos de Washington, aponta mais uma consequência dos vazamentos: a autocensura. “Nenhum diplomata americano agora vai colocar suas impressões por escrito”, prevê. “Não vai dizer que um ministro é corrupto, por exemplo. Os telegramas fechados [confidenciais] serão tão aborrecidos quanto os abertos. Fico pensando nos historiadores do futuro, que não terão com que trabalhar.”
De acordo com ele, a diplomacia americana é uma das mais abertas do planeta. Cada relatório, mesmo os confidenciais, pode ser distribuído por vários setores diferentes dentro do Departamento de Estado, e para outras agências go vernamentais. Esse acesso deve ser mais e mais restrito. Como a dar-lhe razão, ontem à tarde o Departamento de Estado anunciou que o acesso a informações das embaixadas foi “cortado temporariamente” de uma rede militar.
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