Battisti é natural de Latina, cidade a 70 quilômetros de Roma. Lá ainda moram três irmãos – Vincenzo, Rita e Assunta. O mais velho, Domenico, de 65 anos, mora com a mulher, Ivea, nas imediações de Grosseto, na Toscana. Foi ele quem abriu a casa para conversar com a reportagem da Gazeta do Povo sobre Battisti, condenado na Itália pelo assassinato de quatro pessoas no fim dos anos 70 – três deles como o executor e um como mandante.
Com base no relato de Domenico e do próprio Battisti no livro Minha Fuga Sem Fim, escrito pelo italiano e publicado em 2007, a Gazeta do Povo conta o outro lado da história do ex-ativista de esquerda que se declara inocente das acusações e que, fugido da Itália, se transformou no pivô de um conflito diplomático com o governo brasileiro.
“Reapropriações”
“Ele [Battisti] não é um assassino. Não matou ninguém. Querem transformá-lo em um monstro”, afirma Domenico. Ele e a mulher ressaltam que toda a família Battisti tem “o mais profundo respeito” pelos familiares das vítimas do PAC, o grupo Proletários Armados pelo Comunismo, do qual Battisti participava. “Uma vida é sagrada. Não pode nunca ser tolhida”, afirma Ivea. “Nosso pai [Antonio] era comunista, mas sempre nos ensinou o respeito à vida. Éramos uma família de trabalhadores honestos. Cesare não mataria ninguém”, diz Domenico.
O casal defende ainda a inocência de Battisti e reclama do tratamento que a mídia tem dado para o caso. Os apoiadores do ex-ativista, por exemplo, citam o nome de dezenas de italianos que cometeram crimes graves e que estão no exterior atualmente, sem que a Itália e a imprensa do país se preocupe em pedir a extradição ou fazer protestos em favor disso.
O irmão e a cunhada ainda usam a situação em que a Itália passava à época e o modo como o processo contra Battisti foi conduzido como argumentos para questionar a condenação do parente famoso. “Como podem dizer que ele liderava o PAC e dizia quais mortes deviam ocorrer? Ele era um rapaz de 20 e poucos anos [na época dos assassinatos]”, diz Ivea.
Segundo o casal, Battisti passou pelas mesmas situações que tantos jovens de famílias simples enfrentaram na Itália dos anos 70, década de agitação política em que muitos se engajaram na causa esquerdista. O próprio Battisti, no livro que escreveu, reconhece ter praticado delitos menos graves em nome do socialismo: “Participei das ‘reapropriações proletárias’: uma definição que nos permitia enfeitar com uma conotação política os roubos e pequenos assaltos”, descreve o ex-ativista.
Por praticar essas “reapropriações”, Battisti foi preso. Na cadeia, conheceu Arrigo Cavallina, nove anos mais velho, que foi um dos fundadores do PAC. Aderiu à causa e partiu para a luta armada. Ele e tantos outros fizeram essa opção porque, segundo o relato do ex-ativista, “se negavam a ficar prensados entre um Estado não raro assassino, dilacerado por conflitos internos, e a esmagadora opinião stalinista”.
Para a maioria dos italianos de hoje, esses grupos apenas impunham o terror e queriam derrubar um governo eleito democraticamente. A família Battisti diz que a história é muito mais complexa. Para eles, apesar de o governo italiano da época ter sido eleito pelo voto, não poderia ser chamado de democrático – pois havia perseguições a adversários políticos e as garantias individuais democráticas nem sempre eram cumpridas pelo Estado.
“Nem a esquerda italiana conseguiu entender, até hoje, o que aconteceu naquela época. Ninguém quis ir a fundo nessa ferida”, afirma Ivea. Domenico lembra que a Itália vivia anos de muita violência. Para atividades corriqueiras, como ir ao mercado, todo mundo ia armado, diz a esposa dele. E isso já ocorria antes dos movimentos de resistência começarem a agir. “Como dizem que a situação era normal?”, questionam.
A família fala da carta escrita em 2009 por Francesco Cossiga, ex-presidente italiano, como prova de que a Itália vivia um estado de exceção nos anos 70. Segundo o político, morto no ano passado, Battisti sofria perseguição política, e deveria temer pela vida se retornasse ao país.
Fuga e condenação
No livro, Battisti relata que rompeu com o PAC após o assassinato de Antonio Santoro, em Udine, ocorrido em 6 de junho de 1978. Esse foi um dos homicídios que a Justiça italiana diz ter sido praticado pelo ex-ativista.
Ao anunciar a ruptura com o PAC, Battisti afirma que foi muito criticado e acusado de traidor por Pietro Mutti – um dos expoentes do grupo e principal delator do italiano nos processos finalizados nos anos 90. Como “arrependido”, Mutti conseguiu reduzir sua pena e cumpriu pouco menos de dez anos de prisão.
Antes do rompimento entre os dois, Battisti ainda recorria a Mutti. Foi a Mutti que pediu ajuda para fugir da prisão, em 4 de outubro de 1981, dois anos após ter sido preso na Itália. Nessa época, ainda sem as delações premiadas, Battisti foi condenado a 12 anos de cadeia, por furtos e participação em grupos de luta armada. Mas ele não pretendia cumprir pena em um país que vivia, em suas palavras, “a mais violenta repressão”.
Por isso escapou. O fugitivo passou um tempo na França. De lá, foi para o México, onde ficou por vários anos. Conheceu uma francesa e passaram a viver juntos. Quando ela retornou à França, a seguiu. Nessa época já estava em vigor no território francês a chamada Doutrina Mitterrand, que previa asilo para os guerrilheiros italianos que haviam largado as armas. Seguro em Paris, o italiano teve duas filhas, escrevia livros de ficção policial e era zelador de um edifício.
Nessa época, Battisti já havia virado réu de novos processos na Itália, abertos no período em que esteve no México. Foi durante essas ações judiciais que o antigo amigo Mutti tornou-se o principal delator de seu ex-companheiro. Em 1990, Battisti, Mutti e mais uma dezena de pessoas foram condenados a penas que variavam de um ano à prisão perpétua – a sanção mais dura foi aplicada ao fugitivo famoso, que foi julgado à revelia.
A sentença foi confirmada em segundo e em terceiro grau. “Pietro Mutti me acusou de tantas coisas que nenhum magistrado honesto, que dedicasse algum tempo para examinar suas declarações, acreditaria, nem um instante sequer, naquele fabuloso amontoado de mentiras”, afirma Battisti no livro.
Mesmo fugitivo, ele foi representado por um advogado, que tinha procurações falsas, segundo a família Battisti. “Como ele podia saber do processo, se estava fora, sem contato com a Itália? Nem a gente sabia do processo”, diz Ivea.
Guinada francesa
Battisti viveu na França, apesar das condenações na Itália, até 2004. Foi quando o governo francês deu uma guinada à direita e permitiu que ele fosse extraditado. Battisti recorreu à Corte de Paris, e depois à Corte Europeia de Direitos Humanos. Mas não teve sucesso.
“Eles decidiram pela extradição porque se basearam nos processos italianos. Mas eles não são legítimos”, afirma Ivea. Ela ainda questiona: “Será que, se ele fosse realmente esse assassino terrível, teria vivido por tanto tempo em paz no México e depois na França? Teria constituído família e optado por um trabalho estável?”
Da França, Battisti fugiu para o Brasil, onde foi preso em 2007 e ainda aguarda, preso, o fim do processo de extradição.
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