por Flavio Goulart, Médico – Consultor Autônomo no blog Saúde com Dilma
Aquelas pessoas que defendem o nosso Sistema Único de Saúde freqüentemente se alvoroçam em denunciar “os inimigos do SUS” e suas de artimanhas antipopulares. Tais inimigos não são certamente poucos, mas não custa perguntar quem são eles exatamente e onde se reúnem para tramar suas maldades? Com efeito, não faltam reuniões, congressos, simpósios e seminários, além de outros eventos a favor do SUS. Ao mesmo tempo, ninguém é capaz de dar notícia de um movimento semelhante – mas de sinal contrário. O resultado disso é que abundam os argumentos pró-SUS, em toda parte.
Platéias ululantes, como diria Nelson Rodrigues, encontram mais e mais argumentos para a defesa do sistema de saúde. Mas aí reside um grande problema: é gente que já está convencida das vantagens do SUS, falando para outras tantas pessoas que também acreditam no mesmo. E fica nisso… Uma espécie de casamento consangüíneo se instala e como sempre acontece nesses casos, o produto costuma ser estéril ou deformado. E o mesmo genial teatrólogo já dizia: “toda unanimidade é burra” – sábias palavras!
Penso sinceramente que precisamos arejar o debate sobre o nosso sistema de saúde. Utilizar-se, por exemplo, da velha máxima socrática, de questionar todas as verdades estabelecidas, principalmente aquelas previsíveis e repetidas sem crítica. Chega de falar abstratamente em “conquistas” ou de “respeito ao que está na lei”. Precisamos, sim, ultrapassar certos limites, mesmo alguns daqueles impostos pela Constituição de 1988. Essa afirmativa parecerá herética, porque para muitos militantes qualquer tentativa ou mesmo insinuação de buscar novos rumos para o SUS corre o risco de ser confundida com uma renúncia às sobreditas conquistas. Ultrapassar limites pode ser o único jeito de fazer o SUS avançar, sinto muito em dizê-lo.
Vejamos alguns exemplos denunciadores da “UNISUS”, a Unanimidade Nada Inteligente que assola o SUS. Primeira unanimidade: “o SUS tem a obrigação de dar tudo para todos”. A primeira pergunta seria: mas algum sistema de saúde, mesmo de países evoluídos culturalmente e desenvolvidos economicamente como a Suécia conseguiram tal feito? Não precisa ir a Estocolmo perguntar: não conseguiram! Aliás, a noção de equidade, tão cara aos defensores do SUS, não escapa a um dilema notório: os mais ricos adquirem privilégios toda vez que se aumenta a cobertura do sistema, principalmente quando a demanda é pelas ações de maior complexidade. Ou vocês acham que é fácil um pobre se internar no Incor de São Paulo? O problema é que existe uma máxima “evangélica” quase inevitável nas políticas públicas: quem já tem mais aufere maior proveito do que está disponível. Pobres dos pobres, que só têm amigos pobres e possuem enorme dificuldade em vocalizar suas necessidades. Para eles, excluídos da saúde e de muita coisa mais, devem existir tratamentos diferenciados, de forma que se torna preciso romper com o “tudo para todos”, substituindo-o pelo “mais para quem precisa mais”.
Segunda unanimidade: “mais dinheiro para a saúde, de preferência em percentuais pré-fixados, como acontece na Educação”. O problema não está somente no dinheiro, mas também na maneira como ele é aplicado e gerenciado. Não que sobre grana e que os gestores públicos sejam incompetentes para administrá-la. Isso, aliás, é outra unanimidade, também falaciosa, muito cara aos adversários do sistema. Dizem os economistas (geralmente considerados, “unanimemente”, como adversários da saúde) que se tudo fosse efetivamente vinculado a percentuais fixos nos orçamentos públicos, a soma das partes poderia ser bem superior ao todo. O argumento de que “na saúde é diferente” poderia ser contraposto a outros de igual teor, aplicáveis às áreas de educação, assistência, emprego, reforma agrária, sistema prisional, habitação, transporte público, alimentação etc. Como oferecer tanta coisa para tanta gente se há escassez do principal, ou seja, recursos? Orçamentos não são feitos de látex… Mas não deixa de ser confortador saber que, em anos recentes, a disputa por recursos nas chamadas áreas sociais vem aumentando em nosso país. Isso, é claro, provoca acirradíssima disputa entre os inúmeros programas sociais. Como fazer o pouco ser o bastante para o tudo e para atender a todos, é coisa que ainda não se descobriu no campo das políticas públicas.
Terceira unanimidade: “todo poder aos municípios”. Todo o caminho percorrido até agora nos 22 anos do SUS foi no sentido de uma municipalização dos serviços de saúde pura e simples. Nunca é demais lembrar que, na federação brasileira (já chamada de “jabuticaba”, isso é uma daquelas coisas que só dá por aqui…), são tratados igualmente São Paulo, a capital e Nova Iorque, não a metrópole do norte, mas uma pequena cidade do Maranhão com pouco mais de cinco mil habitantes. Pelas leis da saúde, tem que fazer tudo igual, numa e noutra… Eis algo a ser aprofundado, sem preconceitos. Está provado que a heterogeneidade dos municípios brasileiros contra-indica que os mesmos sejam tratados com normas e mesmo leis únicas – questão de bom senso, apenas. Com efeito, sabe-se que existem municípios brasileiros que carecem de requisitos mínimos, não só para a gestão da saúde como de qualquer outra área pública. Não sei se é o caso de Nova Iorque… Lugares onde não há ação estatal e serviços públicos sólidos, como também agências bancárias, correio, postos de gasolina, vídeolocadoras, internet etc. São sítios perdidos, onde profissionais de qualquer profissão não desejam passar um minuto de suas vidas. Lugares onde, muitas vezes, nem seus prefeitos residem. E aí, isso tem solução? Creio que tem, sim. Mudar a palavra de ordem de “municipalização” para “regionalização”.
Sistemas de saúde têm que ter base regional, não necessariamente local. Mas aí, a conversa é longa. E o meu espaço já acabou. Se conseguir nova carona neste blog, voltarei ao tema mais adiante.
Obrigado pela atenção, leitores!
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