no blog zumbaia zumbi
Publiquei ontem outra coluneta SUS na Teia no Teia Livre -- portal colaborativo ainda em fase de testes, mas cada vez melhor, confira só! --, desta vez sobre fundações estatais de direito privado na saúde pública. À noite, já com a cabeça no travesseiro, fiquei pensando na anticonclusão do texto. Fundação estatal? Sim, não, muito pelo contrário, mais ou menos... afinal, o quê? Não soube concluir: para uns, as fundações melhorariam o problema de gestão. Para outros, o SUS precisa é de mais dinheiro, para ser então completado e funcionar como preveem a Constituição e a Lei 8.080. E me deu um estalo: não importa!
Na verdade, a questão principal foi pincelada no fim do texto: o problema do SUS é que estamos cada vez mais nos distanciando do SUS. Por isso vou reproduzir aqui um texto imenso que a Radispublicou em janeiro de 2010, por acaso, a última matéria que editei. Trata-se da fala no 9º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva (out-nov/2009, em Pernambuco) do ativista Mário Scheffer (na foto), um jornalista-cidadão que pensa o SUS como poucos. O título: "O público está privado". Abaixo, a matéria, que é do Bruno Dominguez. A melhor matéria jamais escrita sobre o SUS. Se o debate sobre o sistema não enveredar logo por este caminho não chegará a parte alguma.
“Todos aqui defendemos com veemência e com convicção o sistema público de saúde, mas também imagino que boa parte, quando precisa de um atendimento médico, recorre ao setor privado”. A referência não tinha intenção de provocar constrangimentos, esclareceu, mas de mostrar que a mesa navegaria por águas difíceis, sem saber ao certo onde atracar. “O risco do naufrágio está posto”. Para Scheffer, a discussão sobre o tema tem sido estéril, “para não dizer esterilizada”.
O debate foi se tornando plebiscitário, disse, como no caso das fundações estatais, ou asséptico, pelo baixo nível de formulação da interface entre SUS e planos privados e na pouca atenção dispensada à agenda do complexo industrial da saúde. “Isso tem que ser encarado como problema da saúde coletiva”, defendeu.
A discussão não é mesmo fácil, ressalvou, razão pela qual tem sido mais animada do que esclarecida. “Os termos público e privado são comumente colocados lado a lado para ilustrar oposições: governo e mercado, o todo e a parte, o aberto e o fechado”. O privado seria necessariamente egoísta e destinado aos ricos; o público, excessivamente generoso e dirigido aos pobres. Mas os limites nem sempre são claros: a presença permanente do privado no sistema levou a mudanças tanto na forma de pagar os serviços quanto na de gerir e fornecer assistência. Os sistemas universais de saúde pelo mundo, comparou, contam com proporção elevada de gastos públicos, em torno de 70%; no Brasil, cerca de 60% são do setor privado. “Temos um sistema universal e uma estrutura de gastos liberal”.
Scheffer afirmou que ganha terreno a tese de que o direito universal à saúde é inviável: “A frase da hora é que o tudo para todos é impossível”. Mas todos seguem se mostrando a favor do SUS, inclusive empresários. “É uma unanimidade artificial”. Os sanitaristas estão pouco mobilizados diante das mudanças que vêm sendo impostas. “Até mesmo segmentos autodeclarados progressistas estão resignados; ou, no poder, à frente das aproximações com o privado.”
A influência vai além da subtração de recursos. O SUS tem convênios com serviços privados para compartilhamento de instalações e equipamentos. Destina recursos públicos à demanda e à oferta tanto de serviços privados quanto de planos. Permite o duplo vínculo, deixando livre o trânsito de profissionais de saúde e pacientes. Mais: cargos de confiança e de gestão têm sido ocupados por pessoas que, além de não integrarem as carreiras do serviço público, têm ligação direta com o privado. Novos marcos legais, municipais e estaduais, autorizam a gestão de hospitais por entidades privadas — OSs, fundações, filantrópicos. E o complexo industrial da saúde é dependente, dada a baixa capacidade nacional.
“Além das iniquidades, os custos administrativos e assistenciais dos sistemas baseados em múltiplas organizações de compra de serviços são elevados e terminam por restringir o acesso e comprometer a qualidade da atenção”. O sanitarista criticou a atuação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS ), que acaba de ser “totalmente capturada por grupos de interesse” — dois representantes de planos privados foram nomeados para a diretoria, agora composta majoritariamente por pessoas vindas do mercado. “Essa é uma decisão de governo, várias forças atuam nessas indicações, mas é triste pensar que um sanitarista foi conivente com a entrega da ANS aos interesses do mercado”.
A rede privada de saúde é desproporcional quando comparada à fatia da população coberta por planos e seguros, cerca de 25%. Da rede instalada, são privados cerca de 60% dos hospitais, 90% das unidades de diagnóstico e terapia, serviços que concentram 54% dos postos de trabalho de médicos, 32% dos de enfermeiros e 40% dos de auxiliares de enfermagem.
Recentemente, os planos e seguros privados têm sido questionados pelo mundo, como no debate sobre a reforma da saúde nos EUA: “A reforma do Obama faz uma pergunta até singela: onde está a eficácia do privado, quando ele gera instituições (no caso, as seguradoras) que se preocupam mais com os lucros do que com o bem-estar da clientela?” Na opinião do sanitarista, os planos privados jamais assegurarão a integralidade da atenção, pois são organizados para atender demandas espontâneas e limitados pelos contratos.
Deve-se rechaçar a visão de que há dois sistemas não-relacionados e distintos no Brasil, conclamou: o SUS, o “sistema dos pobres”, e os planos e seguros de saúde, para trabalhadores formais e classe média. Os planos lucram com a exclusão de procedimentos de alta complexidade e alto custo assumidos pelo SUS, com o dinheiro público destinado ao financiamento de planos para o funcionalismo, com a fila dupla dos hospitais universitários, com a isenção de impostos, com os recursos do Tesouro empregados na ANS, com a formação de fundos e créditos para planos de saúde. E ainda com os subsídios indiretos, como a dedução no Imposto de Renda dos gastos com assistência suplementar.
“Na prática, devido ao apoio tácito do público ao privado, essas regras segmentam o sistema de saúde, que é um só: desigual e concentrado”, opinou. Para ele, é irônico que justamente a inscrição da saúde como bem de relevância pública, na Constituição de 1988, seja usada por instituições privadas para se valerem de políticas públicas de investimento, crédito e proteção fiscal. Ao acionar esses benefícios, o privado se opõe à regulação do Estado e não permite a extensão dos princípios e diretrizes do SUS a suas atividades.
Para Scheffer, já ficou claro que não é incompatível fornecer um sistema de saúde público universal contando com a contribuição coadjuvante do privado. “Os modelos que se revelam mais eficazes atualmente são os serviços de base universais, controlados fortemente pelo público, com um complemento de financiamento e prestação privada”, afirmou. O Estado deve ser forte e regulador para imprimir eficácia e agilidade, ter capacidade de comprar, pagar, incorporar tecnologias na hora certa.
Ele vê no Brasil uma demanda social crescente por mais privado na saúde e uma decisão política para que o sistema seja reformado nesse sentido. Assim, a saúde perde sua natureza de instrumento de proteção social e se transforma em bem de consumo. “Não é possível um novo pacto com a sociedade?” Sua proposta é combinarmos que, à medida que a nação enriquece e evolui, partilhemos essa riqueza coletiva para permitir acesso igualitário à saúde. “Devemos aproveitar essa fase de desenvolvimento para reforçar a visão sanitária focada no bem público, no direito e na inclusão”.
Mas o que se percebe hoje, contrapôs, é um “divórcio” de parte da sociedade com o SUS. Há uma nova onda — “e não marolinha” — de crise de identidade do SUS, com a expansão de fundações, OSs, instituições privadas travestidas de filantrópicas, planos privados voltados para classes C e D. “A velocidade da privatização à revelia do debate democrático tem inquietado os defensores do SUS”, disse. “Então é preciso desconstruir o discurso da privatização, de que não existe outra saída a não ser recorrer ao privado para salvar o sistema de saúde”.
Scheffer citou como exemplo recente artigo na Folha de S.Paulo do secretário de Saúde paulista, Luiz Roberto Barradas Barata [que morreu de enfarte em julho de 2010], em que convocou uma segunda reforma sanitária para superar as dificuldades do SUS. Apontou como solução as organizações sociais como modelo a ser seguido nacionalmente e a exclusão para empresas de planos de saúde privados da cobertura de determinados procedimentos de urgência e alta complexidade em troca de contribuição para o SUS. “O sistema público é que passaria à posição complementar do privado”, condenou o palestrante. “Sem garantias de ressarcimento, o SUS aliviaria de vez os planos privados do ônus de tratar doenças não-lucrativas.”
Em resposta, Scheffer e Sonia Fleury escreveram artigo na mesma Folha lembrando que a reforma sanitária está viva, só não foi concluída. Mesmo emparedado, disse, o SUS demonstra que é viável, como nos programas nacionais de imunização, aids e transplantes. Ele conclamou a academia a atuar sobre evidências e avançar nas pesquisas científicas sobre o papel do privado na saúde no Brasil à luz de quatro variáveis: o lugar tomado pelo financiamento, pela prestação de serviços, pela governança do sistema e pelo complexo produtivo da saúde.
Ao encerrar, sugeriu outra forma de lidar com a insatisfação e a inquietude em relação ao sistema público: “Temos que assumir claramente as mazelas do SUS e demonstrar que pode ser mudado por dentro do público”. Para Scheffer, o SUS tem provado constantemente sua capacidade de se adaptar, de inovar, desde que seja adequadamente financiado e corajosamente regulado. “Soluções já existem e outras devem ser encontradas para reforçar um sistema de saúde público eficiente, de qualidade e acessível a todos”. Foi ovacionado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário