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sábado, 16 de abril de 2011

No Vale da Esperança é proibido adoecer

WANDERLEY M.D. FERNANDES (*) no Correio Braziliense (via clipping MS)



Enquanto os políticos discutem o Código Florestal e ruralistas e ambientalistas se manifestam na Esplanada dos Ministérios, a reforma agrária, há anos, não passa de discursos inflamados. Considerada essencial para o desenvolvimento econômico e social do país, ainda é, entre outras, a que polariza as atenções desde 1962, quando foi criada a Superintendência de Política Agrária (Supra).



A Constituição de 1988 garantiu a desapropriação do latifúndio improdutivo para o desenvolvimento socialmente justo e igualitário do povo brasileiro. As nossas desigualdades no campo estão entre as maiores do planeta: 1% dos proprietários detém cerca de 50% das terras rurais.



Os movimentos campesinos pró-reformas reivindicam que o governo federal implemente medidas complementares aos simples assentamentos, garantidos a subsistência do agricultor e os direitos universais de atenção à saúde. Por incrível que pareça, em pleno século 21, a realidade é bem diferente.



No estado de Goiás, a 250km da capital da República, vemos o Pré-Assentamento Florinda, no Vale da Esperança, onde 103 famílias assentadas em condições de total desamparo reúnem aproximadamente 500 brasileiros, entre adultos, idosos e crianças.



Iniciado em 2007, famílias convidadas foram listadas e acampadas na beira da estrada, rente às cercas da propriedade a ser desapropriada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Nas barracas de plástico e ripas de madeira se amontoavam na esperança de dias melhores. As condições de sobrevivência eram mínimas. Lama ou poeira, as constantes do dia a dia. Ainda assim, resistiam.



Um ano depois foi permitida a entrada nas terras da fazenda. Daí passaram mais dois anos na absoluta miséria rural. A esperança os alimentava, sem notícias sobre o futuro. Em outubro de 2010, a terrra foi dividida.



Em suas próprias glebas, sobrevivem em barracas de pedaços de madeira e lonas, excluídos do básico de saneamento, numa resiliência apreendida de antepassados destemidos. A comida vem da pesca no Rio Paranã e da cultura de subsistência. O gás de cozinha custa R$ 70 o botijão. A bebida, água das minas da serra. Cestas básicas do governo até que chegam, mal distribuídas a cada quatro meses, mais ou menos, mas nem todos as conseguem obter.



A escola mais próxima dista 45km do assentamento. As crianças acordam às 4h da manhã, caminham cerca de 5km na estrada de terra, depois pegam um ônibus que roda mais de uma hora e meia. Estudam das 8h às 13h. À tarde refazem o caminho de volta, chegando em casa próximo das 17h. Banham-se nas águas frias coletadas das que descem das minas das montanhas, comem o que tiver e vão dormir. Por vezes, encontram cobras no meio dos lençóis ou debaixo das camas.



Sem energia, à noite algumas barracas são iluminadas por velas ou lamparinas, e não poucas vezes os assentados se assustam com animais de toda espécie tentando comer o pouco dos alimentos guardados para o dia seguinte.



Na ausência total de assistência médica, quando "sentem alguma coisa" se utilizam das próprias crenças. Dizem que lá "é proibido adoecer". Para febre, chá de raiz de mama cadela. Ferimentos, tratam com mel da casca de pacarí. Em caso de dores, usam garrafada de manacá ou sumo da rama de folhas do melão de São Caetano. No insuportável, chamam o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu ), na linha telefônica 192, ou o Corpo de Bombeiros da cidade mais próxima. Sempre relutam. Quando decidem atender, esperam-nos à beira do asfalto, distante do assentamento 50km. Se os doentes estão em condições, andam até lá; se não, são carregados pela estrada de terra e cascalho. O transporte é inviável: a gasolina custa R$ 5 o litro.



Uma senhora de 62 anos, quando ainda vivia acampada fora da fazenda, "enfermou de asma". Tratava tomando goles da banha de fígado de arraia - depois de exposto ao sol por três dias, e "passando tintura de baba-timão nos peitos". Na crise forte, quando não conseguia mais respirar, chamava o Samu ou os Bombeiros. Se prometiam atender, era levada nos braços de parentes pelos 50km de estrada de terra, na lama ou na poeira, até a beira do asfalto. Na imensa dificuldade para "encontrar fôlego", por várias vezes desmaiava. Não suportou por muito tempo tamanha aflição. Procurou uma rezadeira e se curou com simpatia: criar uma tartaruga na sala de casa. Assim o fez, e "nunca mais teve falta de ar, faz três anos".


Isso ainda acontece no país que a 7 de abril passado comemorou o 63º ano do Dia Mundial da Saúde, a 47 anos de proclamada a Lei do Estatuto da Terra e que em 5 de outubro próximo completará 23 aniversários a Constituição Federativa que criou o Sistema Único de Saúde (SUS).



(*)Cirurgião, docente de medicina da Escola Superior de Ciências da Saúde (ESCS), membro do Grupo de Estudos da Saúde do Partido Verde (wanderleymd@uol.com.br)

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