Estado pagou R$ 354 milhões a 26 cooperativas de médicos sem assinar contrato
em O Globo
Foi na França, entre o fim do século XVIII e início do XIX, que o direito adotou definitivamente a exigência de contratos formais na administração. O objetivo era garantir responsabilidades e punir os desvios por meio de um documento reconhecido pela Justiça. Embora essa exigência tenha sobrevivido ao tempo e se espalhando por vários países, ainda hoje há casos na gestão pública em que prevalece o chamado acordo informal, medida que dificulta a fiscalização do uso dos recursos, além de contrariar a legislação.
É o caso da Secretaria estadual de Saúde. Entre 2007 e 2010, o órgão pagou R$ 354 milhões a 26 cooperativas médicas, sem assinar qualquer contrato prévio com essas entidades, que são responsáveis por fornecer mão de obra às unidades de saúde. O dinheiro foi repassado seguidamente, por termos de reconhecimento de dívida, um instrumento que autoriza os pagamentos, mas não dispensa a assinatura de contratos.
A situação desses pagamentos na saúde, uma das áreas mais críticas do estado, consta de um relatório feito por técnicos do Tribunal de Contas do Estado (TCE) em julho. Do total desembolsado pela secretaria, cerca de 52% foram para três cooperativas: Trust, Multiprof e ServiceCoop. No documento, os técnicos do tribunal alertam para o fato de que esses pagamentos sem contrato ferem a Lei de Licitações. O entendimento é o mesmo de Manoel Messias Peixinho, professor de direito administrativo da PUC-Rio. Consultado pelo GLOBO, ele classificou o caso como uma "irregularidade gritante", em se tratando de órgão público. O professor diz que o caso das cooperativas não se enquadra nem mesmo em situações emergenciais, em que se poderia dispensar a concorrência pública, mas nunca a assinatura de contrato formal:
- Essa prática é absolutamente ilegal. Todas as contratações da administração pública devem ser precedidas de um contrato formal. Isso está claro na Lei de Licitações, que impõe não apenas essa exigência, como também a de se realizar uma concorrência para escolher o prestador de serviço. Portanto, a ilegalidade nesse caso chega ser gritante e pode ser alvo de uma ação criminal contra quem deu a autorização.
MP investiga irregularidades O conselheiro do TCE José Gomes Graciosa, relator do processo que ainda tramita no tribunal, seguiu o parecer do corpo técnico e deu um prazo para que o secretário de Saúde, Sérgio Côrtes, apresente explicações.
Em seu relatório, o conselheiro lembra que a administração pública afronta a Constituição federal ao manter profissionais de cooperativas nas unidades médicas sem que eles sejam concursados.
No Hospital Estadual Alberto Torres, em São Gonçalo, não é difícil encontrar profissionais vinculados a cooperativas.
Um técnico de enfermagem, que pediu para não ser identificado, disse receber cerca de R$ 600 da Trust Cooperativa, valor que está abaixo do piso estadual da categoria, que é de R$ 860. Ele contou que foi contratado pela cooperativa após deixar seu currículo no escritório da entidade em Alcântara, São Gonçalo.
Se é fácil achar um cooperativado, difícil é encontrar um dos representantes das cooperativas. Na última quinta-feira, O GLOBO foi ao endereço da Trust duas vezes, mas ninguém foi encontrado. Achar alguém da Multiprof também não é fácil. Em vários telefones que seriam da cooperativa, ninguém atendeu as ligações. Entre as três cooperativas que mais receberam recursos, uma já encerrou as atividades - a ServiceCoop, que embolsou cerca de R$ 67 milhões, parou de funcionar em 2009.
A utilização de cooperativas para contratar médicos é alvo de ações na Justiça. Promotores do Ministério Público estadual apresentaram este ano uma ação de improbidade administrativa contra o prefeito de Paulo de Frontin, Eduardo Paixão, por suspeita de irregularidades na contratação de servidores através da Captar Cooperativa, que também figura entre as que receberam recursos do estado. Já o Ministério Público do Trabalho move uma ação contra o governo do estado desde 2005.
O procurador do Trabalho João Batista Berthier disse que o órgão tentou resolver a situação antes de ingressar com a ação. A Promotoria quer que os cooperativos sejam substituídos por servidores aprovados em concurso. Berthier afirmou que, já em 2001, muitos médicos recebiam por termos de reconhecimento de dívida, procedimento que ele também considera ilegal: - A prática de se pagar aos médicos por reconhecimento de dívida, porque não existem contratos, foi mantida, mas agora ocorre na relação da secretaria com as cooperativas.
A ausência de contratos dificulta a fiscalização e facilita as fraudes.
Para o Sindicato dos Médicos, o TCE deve ampliar as investigações e determinar quem são os responsáveis pelas irregularidades. O presidente da entidade, Jorge Darze, criticou a ausência de contratos com as cooperativas:
- É muito preocupante que se estabeleçam vínculos com o setor privado sem contratos previamente estabelecidos. Isso exige uma CPI na Assembleia Legislativa. O TCE precisa concluir essa investigação o mais rapidamente possível.
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