De nada adiantaram os apelos da presidenta Dilma Rousseff, dos movimentos sociais e dos idealizadores do Sistema Único de Saúde (SUS) para o Congresso criar formas de aumentar os recursos para a combalida saúde pública. A Câmara deverá aprovar até o fim do mês o projeto de regulamentação da Emenda 29, que não altera os porcentuais mínimos de gastos estatais e, de quebra, pode retirar ao menos 6 bilhões de reais do setor, segundo cálculos do ministro da Saúde, Alexandre Padilha.
A próxima batalha será no Senado, onde a base aliada terá de quebrar a cabeça para garantir que a proposta aumente, de fato, o financiamento da área. Mas, sem consenso, o próprio PT divide-se diante de um amplo leque de propostas, que vão da taxação de grandes fortunas à vinculação de recursos do pré-sal, que só deve começar a gerar dinheiro para a União a partir de 2015.
Após o governo federal desistir de criar um novo imposto para a saúde, os deputados da base aliada decidiram antecipar a votação da matéria para a quarta-feira 21. Em 2008, a Câmara aprovou o texto, base do projeto, mas deixou para analisar depois um destaque apresentado pela oposição que inviabiliza a cobrança da Contribuição Social da Saúde (CSS), proposta pelo Planalto para compensar a perda de arrecadação com o fim da CPMF.
O PMDB antecipou sua posição: votará contra a criação do novo tributo. “Não me venham trazer propostas de uma nova CPMF. Este País não comportaria um novo imposto”, afirmou o líder do partido na Câmara, Henrique Eduardo Alves, em discurso no Plenário. O governo já previa a derrota. “Não trabalhamos mais com a hipótese de criação da CSS”, enfatizou o líder da bancada governista, Cândido Vaccarezza (PT-SP), a CartaCapital. “A União cumpre sua parte. Aumentou as despesas em saúde conforme a variação nominal do PIB, como prevê a lei. Tanto que os gastos aumentaram de 25 bilhões de reais, em 2002, para os 71,5 bilhões previstos no Orçamento deste ano.”
Padilha alerta, porém, que a saúde terá um prejuízo bilionário se o projeto for aprovado com a atual redação. Pelo texto, os estados continuam obrigados a gastar com saúde ao menos 12% de suas receitas, e os municípios, 15%. Mas, em atendimento aos apelos dos governadores, que em sua maioria não cumprem a meta estabelecida pela lei, os deputados decidiram que os recursos do Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) serão retirados da base para o cálculo dos 12% da saúde.
Como os estados devem arrecadar mais de 58 bilhões de reais com o Fundeb, cerca de 7 bilhões deixariam de ser aplicados na saúde. Em compensação, o projeto deixa mais claro o que pode ou não ser considerado gasto com o setor. Trata-se de uma medida para evitar a “maquiagem” das despesas, uma vez que muitos estados têm incluído gastos que não são específicos de saúde, do custeio da Previdência à vacinação do gado contra a febre aftosa, como ocorreu na prestação de contas de Minas Gerais em 2004.
A perda de arrecadação, em decorrência da concessão aos governadores, seria compensada com a CSS no valor de 0,1% da movimentação financeira. O tributo só seria cobrado de quem tem renda superior ao teto previdenciário, hoje fixado em 3.689 reais. Na prática, 95% da população estaria isenta. Apesar da alíquota baixa (quem ganha 6,5 mil reais, por exemplo, pagaria menos de 3 reais por mês), isso seria o suficiente para garantir 19 bilhões de reais a serem aplicados exclusivamente na saúde.
“Se isso não é um imposto justo, eu não sei o que é”, diz o deputado Pepe Vargas (PT-RS), relator da Emenda 29 na Câmara. “O problema é que o debate sobre o financiamento da saúde não está sendo tratado com seriedade. Todos pregam mais gastos em saúde, mas poucos dizem de onde tirar o dinheiro. Se não houver nova fonte de arrecadação, será preciso tirar dinheiro de outras áreas, da educação, da assistência social, da infraestrutura.”
Exemplos da falta de seriedade com o tema não faltam. O projeto da CSS só não foi votado em 2008 porque a base governista não tinha quórum suficiente para aprovar o tributo. Na ocasião, um jogo do Brasil com a Argentina, pelas Eliminatórias da Copa do Mundo, contribuiu para reduzir a presença de deputados no plenário. O então governador de Minas Aécio Neves (PSDB), distribuiu convites a parlamentares para acompanhar a partida no estádio Mineirão. Pouco tempo depois, o Congresso entraria em recesso. Somente agora o tema saiu da gaveta.
Há um consenso entre os especialistas de que o SUS está subfinanciado e necessita de mais investimentos. A própria Dilma Rousseff admitiu que o Brasil gasta pouco, 42% menos que a vizinha Argentina. Enquanto países desenvolvidos, como França e Reino Unido, investem mais de 2,6 mil dólares per capita anualmente, o governo brasileiro investiu apenas 385 dólares em 2008, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). “Há problemas de gestão e é fundamental que eles sejam solucionados. Mas para garantir a atenção à saúde preconizada na Constituição e com a qualidade desejada pelos cidadãos mais recursos serão necessá-rios”, afirma a pesquisadora Luciana Mendes Servo, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Assim que for votado na Câmara, o projeto segue para o Senado. O governo teme que os senadores retomem o texto original da proposta, que vincula à Saúde 10% das receitas brutas da União. Sem a criação de um novo tributo, esse seria o “presente de grego” que Dilma disse não querer receber. Na prática, os gastos da União no setor poderiam passar, da noite para o dia, de 71,5 bilhões de reais para mais de 104 bilhões, segundo as estimativas feitas pelo Instituto de Direito Sanitário Aplicado (IDSA). “Isso é inviável. A bandeira dos 10% é histórica, mas sem receita é impossível de ser alcançada”, afirma o líder do governo no Senado, Romero Jucá (PMDB).
Diante do impasse, o ministro Padilha aposta no aumento dos tributos sobre o cigarro, a bebida alcoólica e os carros, como o seguro Dpvat. A lógica é a de onerar quem sobrecarrega o sistema público de saúde com enfermidades que poderiam ser evitadas. Pelos cálculos do governo, 12 bilhões de reais poderiam ser arrecadados anualmente com essas medidas. O deputado Pepe Vargas também propõe a taxação de lucros e dividendos remetidos ao exterior, com uma estimativa de arrecadação superior a 8 bilhões de reais. “A vantagem é que essa medida não aumentaria a carga tributária internamente.”
Outra hipótese é a criação de uma CSS compensada, na qual os contribuintes poderiam restituir os valores pagos na declaração do Imposto de Renda. “Além de facilitar o combate à sonegação, o governo conseguiria arrecadar algum tributo de quem está na informalidade e não paga impostos”, diz Vargas. “Há muitas propostas sendo discutidas, mas ainda não há nenhum consenso. Estamos iniciando esse debate agora. Certo é que teremos de aumentar a arrecadação, porque os gastos com saúde só tendem a aumentar, uma vez que a expectativa de vida dos brasileiros é maior e as novas tecnologias de tratamento são sofisticadas e caras”, completa Paulo Teixeira, líder do PT na Câmara.
Quanto à taxação de grandes fortunas, ninguém aposta realmente nessa saída. “Sempre se fala nisso para custear tudo, educação, saúde, assistência social, mas nunca o debate avança”, lamenta a coordenadora setorial do PT para a saúde, Conceição Rezende, atual secretária de Saúde de Betim (MG). “Fato é que os municípios gastam muito além dos 15% previstos em lei para compensar o baixo investimento dos estados e do governo federal. A média varia entre 20% e 30% da receita bruta das cidades. A União precisa investir mais. O PT e diversos outros partidos de esquerda sempre levantaram a bandeira dos 10% de investimento federal para a saúde. Passou da hora de o Executivo e o Legislativo criarem uma forma de efetivar esse projeto.” •
*Colaborou Ricardo Carvalho
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