As reações ao câncer de Lula expõem um Brasil tosco
POR CYNARA MENEZES na Carta Capital
DIZEM QUE LULA não desencarnou do poder. Mas uma grande porção do Brasil ainda não desencarnou de Lula. Entramos no 11° mês do mandato de Dilma Rousseff, muita água correu por debaixo da ponte. O ex-presidente, embora mantenha contato frequente com a sucessora, influencia muito menos o governo do que vaticinaram vários de seus opositores e quase 100% dos colunistas políticos da mídia brasileira, para quem Dilma seria um fantoche manipulado por seu mentor. Neste tempo, o metalúrgico dedica-se a palestras no País e no exterior. Volta e meia é agraciado com um título de doutor honoris causa de alguma universidade.
Mesmo assim, o ressentimento de uma porção da sociedade não arrefece. Foi assim quando a faculdade francesa Science Po lhe concedeu uma honraria. Na ocasião, não faltou quem se indignasse com o fato de Lula ser o primeiro latino-americano a receber o título. "Por que não Fernando Henrique Cardoso?", perguntou uma repórter. E tem sido assim desde o sábado 29, dia em que o ex-presidente anunciou ter sido acometido por um câncer de laringe. Milhares foram as mensagens de solidariedade, civilizada foi a maioria retumbante da oposição política, a começar pelo próprio FHC. Mas igualmente afluíram, notoriamente da cabeça de gente que se acha mais bem informada e inteligente que a média, velhos preconceitos, ignorância e grosseria. Nunca antes na história do Brasil alguém recebeu tantos ataques pelo simples motivo de anunciar uma doença.
Uma boa parte da mídia que alimentou o preconceito agora se assusta com a grosseria nas redes sociais
Para quem acha que o Brasil continua o mesmo desde sempre, vale relembrar um episódio de quase 60 anos. Em 1954, quando Getúlio Vargas se suicidou, percorreu e ganhou força na elite paulistana a tese de que o presidente havia se matado em um último ato maligno para constranger seus opositores e incitar a população. Talvez atualmente alguém ache que Lula "contraiu" um câncer para colher dividendos políticos.
O ex-presidente demonstrou altivez e transparência no trato com a adversidade, ao deixar claro, por meio de um boletim médico oficial, o diagnóstico de um tumor maligno em sua garganta. Uma semana antes, ao encontrar Dilma Rousseff em um evento em Manaus, Lula havia se queixado de uma rouquidão persistente e confidenciado a sensação de passar por algo grave. Dilma teria insistido para que procurasse o cardiologista de ambos, Roberto Kalil Filho, mas Lula resistia à ideia.
De volta a Brasília, Dilma ligou para Kalil. Pediu ao médico para "ir atrás" de Lula. "Kalil, você tem de caçar o homem. Ele não está legal" teria dito a presidenta. Não se sabe se a pedido de Dilma, mas Marisa, mulher de Lula, foi quem tomou a iniciativa de ir ao Hospital Sírio-Libanês, queixando-se de uma dor de cabeça constante. Só assim o ex-presidente, que a acompanhava, acabou examinado pela equipe de Kalil Filho. Na própria sexta-feira 28, Lula foi submetido a exames. No dia seguinte, recebia o resultado da biópsia com o diagnóstico de câncer.
Abalado a princípio com a má notícia, Lula atribuiu a doença imediatamente ao cigarro. Ele parou de fumar em janeiro do ano passado, mas manteve o hábito das cigarrilhas. "Foi o cigarro, não foi, doutor?" perguntou, de acordo com os médicos que o atenderam. Luiz Paulo Kowalski, um dos maiores especialistas latino-americanos em cirurgias de cabeça e pescoço e um dos integrantes da equipe que atendeu o ex-presidente, afirmou que as chances de cura no caso de Lula, com um tumor de 3 centímetros localizado acima das cordas vocais e gravidade considerada "média", são de 80% a 90%.
A opção pela quimioterapia e pela radioterapia, em vez da cirurgia, foi uma decisão médica. O câncer na laringe ocorre predominantemente em homens e é um dos mais comuns na região da cabeça e do pescoço. Cerca de 25% dos tumores na região são na laringe, segundo o Instituto Nacional do Câncer (Inca), o que representa 2% do total de casos de câncer no País. Lula estava, por assim dizer, no grupo de risco da doença: pessoas que fumam, bebem e falam muito alto têm chances bem maiores de desenvolver a doença. Outros fatores de risco associados à sua atividade come político são o estresse e a má alimentação. O sintoma mais comum da doença é justamente a rouquidão persistente.
Também influi o fato de Lula ter alguns casos de câncer na família. Sua mãe, dona Lindu, teve no útero. Sua irmã Marinete morreu aos 72 anos, em junho passado, oito meses após descobrir um no pulmão. João Inácio, irmão de Lula por parte de pai, morreu aos 41 anos de câncer no cérebro. Outros dois irmãos do ex-presidente tiveram a doença e se curaram: Maria teve câncer de mama e Jaime, também câncer na laringe. "O tratamento foi doido. Jaime sofreu bastante. Mas valeu a pena. Está curado", disse Frei Chico, o irmão que atua como porta-voz da família. Lula deverá perder o cabelo e também uma de suas características mais marcantes, a barba. Só se saberá, porém, como reagirá à quimioterapia com o decorrer das semanas: a dose que recebeu na segunda-feira 31, a primeira, foi "mais forte" que o normal, segundo Kalil Filho disse a CartaCapital.
O tratamento deve durar até fevereiro e o ex-presidente, que tinha a agenda cheia de palestras, cancelou todos os compromissos. Aliás, por ordem de Marisa, a equipe que o auxilia no Instituto Lula montou um forte cordão de isolamento em torno do ex-presidente. As visitas têm sido monitoradas, bem como limitado o tempo de fala. Paulo Okamoto foi escalado como o interlocutor. É ele quem leva e traz recados para e de Lula. Uma das raras manifestações nos últimos dias ocorreu na segunda-feira 31, após a primeira sessão de quimioterapia. Em vídeo exibido no site do instituto, o ex-presidente agradeceu as mensagens de apoio e demonstrou otimismo: "Não existe espaço para o pessimismo, para ficar lamentando. Se o dia não foi bom, a gente faz ele ficar melhor amanhã". Estava ao lado da mulher.
Bastante rouco, ele lamentava não poder falar, seu "esporte" favorito. "Estou doido para falar com os companheiros e companheiras mais forte, mas não estou podendo", brincou, no vídeo, e se despediu: "Até a primeira assembleia, o primeiro comício, o primeiro ato público". Apesar dos bons resultados no tratamento com químio e radioterapia, o sofrimento dos pacientes com a doença, como aconteceu com o irmão de Lula, ocorre, sobretudo, por estar situado em uma área delicada, responsável não só pela fala como pela deglutição.
Imediatamente após o anúncio da doença, começaram as manifestações nas redes sociais sobre o câncer de Lula. No Twitter, a hashtag "Força Lula" ocupou durante várias horas o primeiro lugar entre os tópicos mais comentados no fim de semana. Em paralelo, começaram a surgir, porém, aqueles que diziam "bem feito" para a doença do ex-presidente e os que questionavam por que ele optou por se tratar em,um hospital privado e não pelo Sistema Único de Saúde(SUS). Na verdade, Lula é atendido no Sírio-Libanês por meio de um plano de saúde, como tantos milhares de cidadãos, ricos, remediados ou nem tanto. Tratava-se de um subterfúgio para que novamente o preconceito de classe mostrasse sua face mais feroz.
O colunista da Folha de S. Paulo Gilberto Dimenstein, que havia publicado um curto texto no sábado no qual dizia que o câncer de Lula iria servir "de lição" para os tabagistas contumazes, sofreu uma onda tão grande de ataques nos comentários online que decidiu publicar um novo artigo, "O câncer de Lula me envergonhou", no qual dizia ter sentido um "misto de vergonha e enjoo" com os leitores. "Foi uma enxurrada de ataques desrespeitosos, desumanos, raivosos, mostrando prazer com a tragédia de um ser humano", escreveu Dimensteirt.
A oposição partidária, a começar por FHC, deu uma lição de civilidade que nem todo mundo foi capaz de entender
"Minha suspeita é que a interatividade democrática da internet é, de um lado, um avanço do jornalismo, e, de outro, uma porta direta para o esgoto do ressentimento e da ignorância." Foram tantas as manifestações agressivas que os responsáveis pelo site da Folha chegaram a suspender temporariamente os comentários nas reportagens publicadas no fim de semana, que não são mediados um a um.
Em editorial na quinta-feira 3 intitulado A Volta por Cima, o jornal O Estado de S. Paulo elogiou a transparência de Lula e condenou o tom das críticas: "É sabido que em toda parte a internet é também um repositório de torpezas. Mas não é em toda parte que líderes políticos contribuem, pelo modo como reagem a uma grave enfermidade, para elevar os padrões de ética pública".
Ainda assim, parte da mídia continua a insinuar que Lula usará "politicamente" a doença, como se a empatia que um câncer naturalmente gera tivesse sido calculado. São os mesmos que acusam Dilma de ter usado a descoberta de sua doença para vencer as eleições, quando o que se viu de fato foi esta mesma porção da mídia valer-se da enfermidade da então ministra para tirá-la do páreo da sucessão presidencial do ano passado.
Têm a mesma intenção os que veem naqueles indignados com as baixezas na internet a intenção de santificar Lula. O ex-presidente cometeu erros, foi conivente com a corrupção, não fez mais do que seguir a política do PSDB, dizem. Restam algumas perguntas: o que a descoberta de uma doença tem a ver com o julgamento político e histórico de Lula? Quem procura esse caminho não faz justamente o que ele aponta nos adversários, ou seja, tentar tirar do episódio um proveito político?
Felizmente, a oposição partidária brasileira não seguiu o mesmo caminho dos ataques num momento de drama pessoal. Um dos primeiros a se lançarem em defesa de Lula foi Fernando Henrique Cardoso. Após uma palestra, FHC atribuiu os comentários ao "recalque" de setores da sociedade. "Acho que isso é uma espécie, de recalque, eu não endosso isso", disse. "E um equívoco. Não tenho visto, mas acho um equívoco. Vida humana, saúde, não, que é isso?" O tucano disse pretender procurar o adversário político para conversar, em um momento mais tranquilo. Sobre as críticas por Lula não ter ido se tratar no SUS, Fernando Henrique considerou um absurdo relacionar o tratamento à situação da saúde no País.
"O presidente será tratado (no Hospital Sírio-Libanês) como qualquer pessoa que pode ser atendida lá. Se todos pudessem ter o mesmo tratamento, seria o melhor. Mas não é o momento para isso", afirmou. FHC lembrou do começo da relação entre ambos, quando Lula era ainda líder sindical, e desejou pronto restabelecimento. "Esse é o desejo de todos os brasileiros. A pessoa que tem a projeção e o grande número de feitos pelo Brasil deve receber a maior solidariedade, sobretudo neste momento de dificuldade.
Também o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, desejou melhoras ao ex-presidente, durante a solenidade de entrega do prêmio às Empresas Mais Admiradas no Brasil por CartaCapital, na noite da segunda-feira 31: "Com a fé e orações de milhões de brasileiros, tenho certeza de que o presidente vai se recuperar". No Twitter, vários oposicionistas se manifestaram. O deputado federal Roberto Freire, líder do PPS, um dos mais ferrenhos opositores ao governo Dilma, escreveu: "Agiu com correção o ex-presidente Lula não escondendo a doença. É raro tal atitude em homens públicos. Solidariedade. Desejo pronta recuperação".
Em seu discurso na mesma festa de CartaCapital, Dilma Rousseff, que havia visitado o antecessor horas antes, desejou a plena recuperação do ex-presidente, chamou-o de "estadista"e lembrou das políticas econômicas adotadas em 2008 que permitiram ao Brasil passar incólume pela primeira fase da crise financeira mundial. "O presidente Lula nos levou a uma receita de desenvolvimento que continuaremos perseguindo", afirmou.
Como reação ao obscurantismo, tanto no Twitter quando no Facebook surgiram depoimentos de pessoas que tiveram câncer e foram tratadas, com sucesso, no SUS. O colunista Elio Gaspari, que cobrou de Lula o desafio feito em 1998 quando candidato ("Eu não sei se o Fernando Henrique ou algum governador confiaria na saúde pública para se tratar"), lembrou que foi por causa do câncer linfático de Dilma Rousseff que um medicamento para tratamento da doença, o rituximab, passou a ser distribuído a pacientes da rede pública. Gaspari também lembrou que, não fosse pela Justiça, o PSDB teria entregue 25% dos leitos de um dos centros públicos de excelência para tratamento do câncer, o Instituto do Câncer do Estado de São Paulo," à privataria".
O cálculo político não seria de quem acusa Lula de querer explorar sua doença?
A transparência de Lula em relação à enfermidade foi considerada positiva por vários colunistas, obviamente comparando com o ocorrido com o venezuelano Hugo Chávez, diagnosticado com câncer na região pélvica em junho, mas que até hoje não se sabe exatamente onde. Desconfiado dos médicos de seu país, Chávez optou por se tratar em Cuba. Hoje diz estar curado, mas um médico que supostamente o tratou chegou a afirmar que o presidente da Venezuela teria apenas dois anos de vida. Ao contrário de Lula, nenhum boletim médico foi divulgado a respeito do estado de saúde de Chávez.
A oposição partidária na Venezuela também se comportou a anos-luz da brasileira. Mesmo desejando "melhoras" ao presidente, os oposicionistas de lá duvidaram da veracidade da doença, que atribuíram a uma "estratégia política" com o objetivo de faturar mais facilmente as eleições do ano que vem. Depois de Chávez aparecer sem cabelos e visivelmente debilitado pela quimioterapia, muitos consideraram um erro as dúvidas lançadas pela oposição, que agora, ao contrário, buscam declarar o presidente incapacitado para governar: em outubro, solicitaram ao Supremo Tribunal de Justiça que designe uma junta médica para examinar o presidente e dizer qual seria seu"real"estado de saúde.
Mais transparente do que Chávez, o presidente do Paraguai, Fernando Lugo, que se tratou no Brasil de um câncer linfático, também enfrentou de início tentativas da oposição de destituí-lo do cargo. Com o êxito no tratamento, as pressões acabaram. No Brasil, apesar da aparente civilidade de oposição e imprensa, a simples menção a Dilma Rousseff no vídeo de agradecimento feito pelo ex-presidente fez pulular uma nova onda de críticas:utilizará Lula sua doença com fins eleitorais? Se Dilma, vítima de um câncer linfático em plena campanha à Presidência, não o fez, tudo indica que Lula, ao contrário, enfrentará a doença com o máximo de dignidade possível.
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