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quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Santa Casa


Uma madrugada comum, dia de semana. Os médicos e enfermeiros não param um segundo. Será que esqueceram de mim?
Jade Percassi (*)

– Enfermeira! Enfermeeeeeiraaaa....

O grito abafado parece sair de uma caverna, mas vem de uma das duas únicas salas improvisadas para os pacientes mais graves, em observação. Os demais, como eu, pendem de macas e cadeiras de rodas pelos corredores do pronto-socorro central. Sangue, faixas, lágrimas, hematomas e feridas abertas em profusão convivem com os gemidos de dor da gente. Hospital de guerra? Não, não estamos em Gaza, estamos no coração da segunda maior metrópole do mundo. A equipe clínica reduzida é testada em sua residência para malabarismo, resistência e a capacidade sobre-humana de definir prioridades entre as cenas dantescas de sofrimento humano. Quem nunca assistiu House que atire a primeira pedra. Acontece que aqui é de verdade. Termina mais uma triagem, aproximam- se novamente.
– Calma. Vamos tirar o senhor daqui. Sente dor? Onde dói mais?
– Vamos lá, colabore; não se mexa.
– Olha, senhora, não vou mentir, é um pouco chato, mas já vai passar...
– Qual o seu nome? O que aconteceu? Há quantas horas foi isso?
– Agora nós vamos pedir estes exames, você aguarda que vão te chamar pelo nome. Consegue andar? Vamos ver alguém para te levar...
As mesmas perguntas se repetem, num mantra que parece não ter fim. Não lembro exatamente o que aconteceu, nem há quantas horas estou aqui, doutor. Abstraindo a dor, só consigo ainda me surpreender com a quantidade de gente estropiada que não para de chegar, reparar no descascado das paredes e nos sinais de cansaço que começam a surgir no seu semblante. Ao meu lado tem um moço que engoliu a prótese dentária. Em frente, um garoto cheio de hematomas mal consegue balbuciar as palavras. Uma senhora na maca da esquerda me faz lembrar de minha avó, que também tinha de ser amarrada para não cair. Chegam novos casos, trazidos pela guarda civil municipal, pela polícia, pelos bombeiros. Uma madrugada comum, dia de semana. Os médicos e enfermeiros não param um segundo. Será que esqueceram de mim? Tento cochilar, mas o colar de imobilização me impede de relaxar. Sou levada por um corredor estreito até um elevador com piso de banheiro. Não posso evitar esboçar um sorriso. A enfermeira retribui com bom humor: que mau gosto, né? Reformaram tanta coisa aqui por fora, custava colocar um piso decente no elevador? Ela ri. As reformas eram contrapartida do hospital novo, lindo e reluzente que construíram no mesmo quarteirão, para quem pode pagar. Hospital-shopping-center maldito, penso eu, a cada tranco da cadeira de rodas nos degraus desgastados. Por que mesmo a grande parte dos recursos da saúde está lá? A vida das pessoas ricas vale mais? Este pronto-socorro quase fechou no início do ano, por falta de verbas. Para onde vão mandar os motoboys, pedreiros, faxineiras, garis, professoras, recepcionistas, vendedores, filhos de trabalhadores desta cidade? Vão morrer por falta de dinheiro, suponho. Chegamos ao prédio redondo. Mais algumas dezenas de pacientes aguardam em fila para fazer radiografias, tomografias, ressonâncias.
– Trouxe o pedido dela?
– O doutor disse que já estaria aqui.
– Bem, não está. Preciso do carimbo e assinatura para autorizar.
São exames caros. A moça atrás de mim se desespera, chama um familiar pelo telefone celular e começa a gritar: é porque é de graça, estou há mais de três horas esperando, não é possível, não aguento mais! Em vão, tento acalmá- la com o que sobrou da voz, dizendo que nada aqui é de graça, que todos nós pagamos por isso. Sou do tempo em que essas coisas eram ensinadas na escola. Organização social e política do Brasil, chamava-se a disciplina em que aprendíamos sobre as instâncias decisórias, os três poderes, origem e destino dos impostos. Não existe mais porque seria um legado da ditadura civil-militar. Ótimo. Nosso professor morreu num acidente parecido com o que me traz hoje aqui. Preferia não ter lembrado disso...
– Senhora, vamos transferi-la para o pré-atendimento do exame. A senhora não tem mesmo convênio?
A pergunta soa como uma ofensa. Então a culpa é minha, se tenho curso superior completo e não contribuo para descongestionar o sistema público de saúde? Quer dizer que você por exemplo cuida das nossas vidas aqui mas se tiver um piripaque será atendido em melhores condições por seus colegas do outro lado da rua? Ai se o professor Florestan Fernandes estivesse vivo para escutar umas dessas. Decido não responder, definitivamente não será uma boa ideia discutir política com quem vai lidar com meu corpo desacordado daqui a instantes...
– Se entrar em pânico, aperte esta campainha na sua mão.
Parece ficção científica, mas não é. A maca se movimenta acionada por controle remoto, no computador dos biomédicos da sala de comando. Perco os sentidos apesar do barulho ensurdecedor. Alguém já havia me prevenido, parece mesmo que estamos sendo enterrados vivos. Acordo do lado de fora. Minha cabeça na tela grande, fatiada em mil pedaços. A enfermeira gentil me leva de volta para as profundezas do inferno. Sirenes de ambulância, do resgate, corre-corre. O neurologista que se aproxima parece meu irmão caçula. Os mesmos olhos, com menos medo, decerto por conta de estar se acostumando com essa loucura toda.
– Parece que não tem nenhuma alteração significativa, vamos te liberar para a clínica de ortopedia, está bem?
Tenho vontade de gargalhar. Menino, como você pode afirmar se houve alteração se não me conheceu antes? Com certeza devo ter perdido um parafuso ou dois, mas isso você não tem como saber... Sigo para o purgatório. Lugar das pessoas quebradas, mas que têm conserto. Foi então que ela surgiu, como um anjo. Vai ver, era mesmo um anjo... que vestia uma roupa verde engraçadíssima. Olhou para os meus pés imundos, a roupa esfarrapada, cabelos desgrenhados, mas mirando-me nos olhos enxergou minha dor, meu medo e meu cansaço.
– Menina, parece mesmo que você foi atropelada por um ônibus! Que sorte não quebrar nada. Deixa ver esse pescoço. Já faz muito tempo que você está nessa cadeira, né? Vamos arrumar um lugar pra você deitar. Você entende, estamos com os leitos lotados, se não se importar tem uma maca onde descansar na sala de curativos... Fique calma, ninguém podia te dar nada porque a dor é um sinal determinante para a avaliação. Agora a dor vai passar. Você vai sair andando por aquela porta de manhã. Tome estes remédios durante uma semana. Evite fazer esforços. Qualquer coisa, você volta aqui, está bem?
Estava. Quase passei a acreditar em milagres. Mas então, para meu desespero, voltei.

(*)Jade Percassi é educadora popular, militante do MST.

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