Geete Anand e Betsy McKay no Valor Económico
A estratégia de longa data da Organização Mundial de Saúde para combater a tuberculose está revelando inesperadas consequências letais. Ao focar por anos nos pacientes mais fáceis de curar, acabou contribuindo com a disseminação de tipos de tuberculose que não podem hoje ser tratados pela medicina moderna.
A OMS e um número cada vez maior de especialistas em saúde defendem agora uma significativa revisão na forma como países com ampla incidência de casos de tuberculose resistente a medicamentos combatem a doença. Isso equivale a reconhecer de fato que a estratégia da OMS para a tuberculose e a dos países que a adotaram falhou em se adaptar rapidamente às mudanças da doença conforme ela foi se fortalecendo, se tornando mais resistente.
A comunidade da tuberculose tem sido conservadora demais em escala global, disse Puneet Dewan, até recentemente chefe do programa de tuberculose da OMS na Índia. Nós devíamos ter pressionado antes por uma atuação abrangente mais agressiva em relação à resistência aos medicamentos, disse ele ao The Wall Street Journal. Há um custo em falhar. Estamos pagando esse custo hoje.
A OMS desempenhou um papel considerável no desenho do programa de tuberculose na Índia, que tem visto uma forte queda no controle da doença. Mas a Índia e outros países pobres estão agora no meio de uma epidemia de tuberculose resistente a medicamentos - variedades mais mortais e mais difíceis de tratar de uma das doenças mais letais e mais infecciosas do mundo.
G.R. Khatri, que liderou o programa de tuberculose na Índia há mais de uma década, classificou de receita para o desastre a epidemia de tuberculose resistente a drogas em Mumbai. A OMS, segundo ele, deveria saber que era tão ruim e ela carrega essa responsabilidade, diz. O que a OMS estava fazendo?
Num teste piloto de um novo método de diagnóstico realizado de um lado a outro da Índia este ano, verificou-se que 6,6% dos pacientes não tratados de tuberculose são resistentes a drogas - sugerindo uma taxa bem maior que os 2% a 3% que a Índia e a OMS vinham citando há anos. Numa clínica em Mumbai, uma pesquisa mostrou que mais de um quarto dos 566 pacientes testados nos últimos meses era resistente ao mais forte tratamento, segundo informações obtidas pelo WSJ por meio da Lei de Direito à Informação da Índia. Os resultados são preliminares, mas, na ausência de uma pesquisa nacional, eles oferecem uma ideia de quais devem ser os índices de tuberculose resistente a drogas.
A OMS está no meio de uma reavaliação completa de sua estratégia com relação à resistência aos medicamentos que inclui ajudar países a mobilizar-se rapidamente para agir em suas epidemias, disse Mario Raviglione, o principal dirigente da OMS para tuberculose. Países com as maiores epidemias, como Índia, China, África do Sul e Rússia, não têm se movido rápido o bastante para combater a resistência aos medicamentos, disse. Por isso não vemos progresso globalmente.
Dewan disse que talvez ele e outros deveriam ter reconhecido a epidemia em Mumbai mais rapidamente. Mas, segundo ele, em parte devido ao fato de a tuberculose resistente a drogas ser uma emergência em câmera lenta, foi difícil tomar ciência de toda a sua dimensão.
Somente agora a Índia está planejando sua primeira pesquisa nacional de pacientes de tuberculose resistente a medicamentos, de acordo com Prahlad Kumar, diretor do Instituto Nacional de Tuberculose, centro de pesquisa governamental baseado em Bangalore. O cronograma não foi definido ainda.
As mudanças políticas são uma validação para Zarir Udwadia, um proeminente físico indiano cujas descobertas polêmicas no início deste ano - ele identificou vários pacientes em Mumbai que são tão resistentes a drogas que praticamente nenhum dos medicamentos existentes funcionam - ajudaram a trazer a situação à tona. Pacientes assim são um reflexo da forma como a tuberculose resistente a drogas é mal gerida, disse Udwadia.
Dewan disse que ele vem sendo surpreendido por insanos níveis de resistência como esses identificados por Udwadia. O próprio Dewan mudou sua opinião: Em 2011, tinha dito numa apresentação na Índia que havia muito ruído em relação ao tema da tuberculose resistente a drogas.
Mundialmente, os estudos sugerem que a tuberculose resistente a drogas é muito mais frequente do que as próprias estimativas da OMS de 3,7% de pacientes não tratados previamente. Os estudos indicam que a resistência vem se tornando pior em muitos países apesar de o elogiado programa da OMS de combate à tuberculose tradicional ter sido bem sucedido em reduzir os números gerais de casos da doença desde os anos 90.
Por décadas, a OMS, grupos de ajuda e governos têm combatido a tuberculose mundialmente. Mas o esforço governamental focou praticamente apenas na doença tradicional, tratável, que é pouco custosa para ser diagnosticada e combatida com medicamentos. Porém, essa estratégia ignorou amplamente os tipos resistentes a drogas.
Na Índia, isso deixou vidas de pacientes como Amol Dhuri, de 22 anos, pendendo na balança. Em janeiro, ele foi diagnosticado com ampla resistência a drogas - mas o laboratório que realizou seu teste ainda não foi certificado pelo governo para fazer esse tipo de exame. De fato, Mumbai, a maior cidade da Índia, ainda não tem um único laboratório certificado para diagnosticar casos de grande resistência a drogas.
Como o governo indiano dá aos pacientes drogas mais fortes apenas se seus testes tiverem sido feitos em laboratórios certificados, Dhuri ainda não começou a tomar os medicamentos que podem curá-lo. Então, ele toma um coquetel de drogas fornecido gratuitamente pelo governo, mesmo sendo resistente à maioria delas. Simplesmente não entendo porque estou tomando esses medicamentos e eles não fazem nenhum efeito, disse Dhuri.
O regime de drogas seguido por Dhuri não é meramente ineficaz, é potencialmente perigoso. Ao dar ao paciente medicamentos que não são suficientemente fortes para matar a bactéria da tuberculose, aumenta-se a chance de ela sofrer mutação e tornar-se ainda mais resistente a drogas.
Isso ainda deixa Dhuri vagando por aí, possivelmente disseminando sua doença resistente a medicamentos. Em média, um paciente de tuberculose infecta entre 10 e 15 pessoas por ano, de acordo com a OMS.
Poucos dias depois de consultas às autoridades feitas por esta resportagem, testes oficiais do governo sobre a saúde de Dhuri, que haviam sido adiados por meses, foram entregues a ele na semana passada. Os resultados confirmaram o que ele e seus médicos já sabiam, que ele está infectado com uma tuberculose resistente a medicamentos. Na semana passada, ele começou a receber medicamentos mais potentes que podem tratar esse tipo de tuberculose resistente.
A OMS, agência da ONU dedicada à Saúde Pública, chegou a defender que os países deviam atacar primeiro apenas a tuberculose regular antes de tratar os casos resistentes. Agora, ela incentiva os países pobres a tratar ambas simultaneamente.
Isso, porém, exige muito mais dinheiro. Haverá um déficit de US$ 3 bilhões ao ano fora os US$ 8 bilhões anuais necessários para combater a tuberculose nos países em desenvolvimento entre 2013 e 2015, de acordo com Raviglione, da OMS.
Na Índia, os medicamentos para tratar a tuberculose regular custam US$ 9 por mês, em comparação aos gastos de US$ 2.000 para a de tipo resistente.
É preciso um grande salto em recursos, pensamento e inovação, disse Soumya Swaminathan, diretor do Instituto Nacional de Pesquisa em Tuberculose, um dos primeiros centros de pesquisa do governo indiano.
A tuberculose, uma doença antiga, transmitida pelo ar e que na maior parte das vezes afeta o pulmão, é disseminada pela tosse e pelo espirro. No século XIX, foi a principal causa da morte de adultos na Europa.
Nos anos 40, os pesquisadores descobriram que ela era curável com o uso de um coquetel de medicamentos por vários meses. Em muitos países ocidentais, a tuberculose recuou. Mas nos países pobres, ela cresceu e se espalhou com a ausência de formas para diagnóstico e tratamento.
Em 1993, a OMS declarou a tuberculose uma emergêcia de saúde pública mundial, após o ressurgimento da doença por meio principalmente da epidemia da Aids. Naquela época, eram cerca de 8 milhões de casos por ano no mundo.
Globalmente, quase não existiam recursos para a tuberculose ou uma estratégia unificada para combatê-la e eram realizados centenas de tipos de tratamento. A solução, muitos acreditavam, era criar um padrão, um tratamento suficientemente simples de ser entendido para ser aplicado nos lugares mais pobres do mundo. A OMS desenvolveu uma estratégia conhecida como DOTS, sigla para o que seria, em tradução livre, Terapia de Curta Duração Observada Diretamente, assim nomeada porque os pacientes eram diretamente observados para se ter certeza que tomavam os remédios. Doses que venham a não ser tomadas, mesmo que brevemente, dão à doença a chance de sofrer mutação e se tornar resistente a medicamentos.
A OMS, que elabora padrões e políticas de saúde, encorajou os países a adotarem o programa DOTS, apesar de não poder obrigá-los a isso.
Sob o DOTS, a Índia confiou em um rudimentar, mas acessível, diagnóstico - checando no microscópio a saliva das pessoas a fim de identificar a presença da bactéria. Os pacientes eram submetidos a seis meses de tratamento com quatro remédios padrão. Os que continuavam doentes retomavam o mesmo regime de tratamento por mais oito meses com um remédio adicional.
Isso podia curar a maioria das pessoas com a tuberculose regular. Mas não era forte o suficiente para curar o tipo resistente a drogas, conhecido como RMD, Resistência a Múltiplas Drogas.
A OMS decidiu que enfrentar a RMD era impraticável em lugares com infraestrutura pobre, pouco dinheiro e milhões de pacientes, onde até mesmo faltava o tratamento básico. Naquele tempo, eram dois milhões de novos casos de tuberculose por ano na Índia - quase nenhum deles era tratado efetivamente - e 97% deles não eram RMD, disse Thomas Frieden, o físico que encabeçou o programa na Índia em nome da OMS nos seus primeiros anos. Ele é hoje diretor do Centro para o Controle e Prevenção de Doenças em Atlanta.
Khatri, que implantou o programa DOTS na Índia em 1997 com Frieden, concordou com a filosofia da OMS de tratar primeiro a tuberculose regular. A cada minuto um paciente morria de tuberculose na Índia, disse. Então achava que nós não devíamos investir um centavo na tuberculose RMD na Índia - e não investi. Khatri hoje lidera a ONG World Lung Foundation para o Sudeste Asiático, voltada para doenças pulmonares.
Foi uma decisão bem intencionada num mundo de recursos limitados, disse Dewan, que deixou a OMC nas últimas semanas para se juntar ao programa de tuberculose na Índia da Fundação Bill & Melinda Gates.
Raviglione também apoia a estratégia original da OMS. Sem ela, diz ele, a resistência a drogas poderia agora ser enorme. O DOTS eliminou muitas das laxas práticas médicas que permitem que as bactérias se transformem em tipos super-resistentes.
Enquanto isso, porém, evidências mostram que cresce globalmente a resistência a drogas. A resistência foi encontrada em todos os 35 países pesquisados para um relatório de 1997 associado à OMS. Um relatório posterior, em 2000, identificou taxas de resistência preocupantes em vários países, incluindo partes da China e da Índia.
Em 2000, a OMS começou um novo programa para atacar a resistência a drogas e para limpar o estrago causado pelos programas de tuberculose que tinham sido despreocupados com relação a como tratavam a doença. Mas o programa nunca foi amplamente implementado, exceto por alguns projetos piloto.
Então, este ano Udwadia e outros no Hospital Nacional e Centro de Pesquisa Médica P.D. Hinduja, em Mumbai, identificaram uma ameaça ainda mais grave. Os cientistas a chamaram de resistência total a drogas, porque praticamente nenhum dos 12 tratamentos usados para curar a tuberculose funcionou.
O relatório soou um alarme global, disse Dewan. A Índia rapidamente formulou um plano para quadruplicar em cinco anos o seu orçamento para combater a tuberculose, apesar deste plano ainda estar à espera de recursos. Ele prevê o estabelecimento de mais laboratórios e cerca de 100 centros especializados em resistência a drogas.
Ainda assim, mesmo essa proposta fica aquém do necessário. Em 2017, segundo esse plano, a Índia será capaz de tratar apenas menos da metade dos estimados 100 mil casos anuais de pacientes resistentes a drogas. Enquanto isso, a Índia abriga a maior população mundial de pacientes de tuberculose - 2,2 milhões dos 8,7 milhões de novos casos registrados em 2011 - e atrasos no tratamento continuam sendo a regra.
No ano passado, a OMS começou a rever sua arquitetura global para o combate à resistência a drogas, segundo Raviglione. Grupos regionais de especialistas irão trabalhar com os governos para ajudá-los a desenvolver e custear programas para combater a resistência a medicamentos.
A OMS também está ajudando os países a implementar um novo teste, GeneXpert, que pode diagnosticar a tuberculose e uma forma comum de resistência em apenas 100 minutos, ao invés de várias semanas.
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